Arcaicos tempos modernos e os direitos humanos

Autores

  • Clodoaldo Meneguello Cardoso

DOI:

https://doi.org/10.5016/ridh.v11i2.262

Palavras-chave:

Direitos humanos, Modernidade

Resumo

Estamos vivendo os problemas próprios dos tempos modernos e, portanto, temos conhecimento e tecnologia para resolvê-los ou a humanidade vivencia um período histórico marcado pelo esgotamento de um modelo civilizatório de longa duração? Na segunda hipótese, a cultura da modernidade não seria mais suficiente para solucionar os grandes problemas globais, pois eles têm origem na própria estrutura da civilização moderna. Seria uma crise paradigmática muito mais ampla e profunda daquilo que se denominou recentemente de pós-modernidade, pois essa seria apenas um tempo de transição.

Sigamos essa abordagem.

Há quase cem anos, o genial cineasta Charles Chaplim já anunciava em Tempos Modernos uma crítica bem humorada sobre o capitalismo, ao nazifascismo e ao imperialismo, mostrando a desumanização do trabalhador desde a Revolução Industrial.

Outras vozes de cientistas e filósofos, em especial, na 2ª metade do século XX, apontaram para um ponto de mutação (como Capra) irreversível. No plano da vida assistimos as revoluções culturais que abalaram alguns pilares edificados na modernidade como: verdade universal, identidade de gênero, supremacia branca, família nuclear, uniformidade de comportamento, autoridade hierarquizada, padronização, dentre outras.    

Em Estruturas das revoluções científicas, de 1962, o filósofo Thomas Kuhn trouxe a ideia do que seja uma crise paradigma e de mudança de paradigma, a partir do estudo sobre o progresso das ciências. Diferente do que se pensava na tradição filosófica moderna, T. Kuhn demonstrou que o avanço das ciências não ocorre apenas por um processo acumulativo linear de teorias, mas por períodos revolucionários que geram novos paradigmas, com novas concepções da própria pesquisa científica. A revolução copernicana seria um exemplo desse fenômeno.

Ampliando este conceito de Khun, sobre o progresso científico, para o processo histórico de longa duração, que chamamos de modernidade, têm-se sinais claros que a humanidade pode estar num período de crise paradigmática global: crise climática, aquecimento de oceanos, profundas desigualdades sociais, consumismo insustentável, altos índices de desemprego, multidões de refugiados pelas guerras e pela fome...

Por sua vez, Immanuel Wallerstein, sociólogo estadunidense, com O universalismo europeu: a retórica do poder (2007), nos deixou um estudo primoroso sobre a longa duração da modernidade em seus 500 anos. Ele demonstra claramente as etapas da construção do paradigma da modernidade como um projeto de poder da cultura europeia impondo valores aos quatro cantos do mundo como universais. Wallerstein também aponta para o esgotamento desse modelo universal europeu que deve dar lugar para universalismos em novos tempos.

Os fundamentos da civilização moderna ocidental: antropocentrismo, racionalismo instrumental, dicotomia homem e natureza, cultura uniformizada, verdade objetiva e dogmas absolutos, acumulação de riquezas...  não mais oferecem caminhos de solução para os grandes problemas naturais e sociais que criamos, pois eles têm origem a própria estrutura cultural moderna.

Se isso é uma realidade da atual conjuntura, como compreender os direitos humanos nesse período histórico de transição paradigmática?

Em sua origem ocidental moderna, os direitos humanos foram concebidos como valores naturais e, portanto, de caráter universal a priori. É denominada de visão liberal, pois a liberdade do indivíduo, enquanto cidadão, surge como valor de fundamento dos demais valores como: igualdade, fraternidade, segurança pessoal dentre outros. Sendo os direitos humanos valores naturais e absolutos, essa concepção cristalizada dos direitos humanos aceita apenas sua ampliação através dos tempos.

Entretanto, hoje compreendemos os direitos humanos como construção histórica, a partir de movimentos revolucionários em que os excluídos e dominados conquistam direitos fundamentais para a dignidade da vida humana. Assim, o processo histórico não é um movimento retilíneo e uniforme, ocorrendo muitas vezes retrocesso ou até mesmo rupturas. Nesse sentido, por exemplo, as revoluções e movimentos socialistas, não apenas ampliaram os direitos conquistados com as revoluções liberais, como também ressignificaram os valores de liberdade e igualdade, tendo como referências os direitos sociais e econômicos.

A visão dos direitos humanos, como construção histórica em constante ampliação e ressignificação, está aberta para repensá-los mais uma vez neste momento de crise paradigmática. Citemos três exemplos.

– Do antropocentrismo ao biocentrismo. A natureza não nos pertence; nós é que pertencemos a ela. Somos uma pequena parte, talvez dispensável, da vida planetária. A crise climática está revelando quão tênue é nossa existência enquanto humanidade. Hoje, pensar os direitos humanos no século XXI é vinculá-los necessariamente aos direitos da natureza. De senhor da natureza ao cuidador respeitoso à diversidade de todas as formas de vida: isso é uma mudança paradigmática.

– Da uniformidade à diversidade. A modernidade teve como projeto a universalização de uma cultura particular – a europeia –, imposta como verdade única a priori a todos os povos colonizados. Esse universalismo europeu, expressão de Wallerstein, apoiou-se nos discursos religioso, filosófico e científico, ao longo dos séculos. A própria concepção dos direitos humanos do ocidente herdou esse caráter em suas declarações universais. Todavia, os padrões da cultura moderna foram sendo descontruídos no decorrer do século XX, em especial, com o processo de comunicação globalizada, que explicitou todas as formas de diversidade cultural até então ocultadas ou violentamente silenciadas. Nessa nova realidade, a universalidade dos direitos humanos não tem mais um caráter a priori, mas está num possível horizonte consensual ético entre os povos. É o que Wallerstein chamou de universalismo universal num novo paradigma.

– Da oposição de direitos à interdependência. A oposição entre os direitos liberais e direitos sociais, como dois fundamentos excludentes na visão da Guerra Fria, ganhou novo significado com a Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena, em 1993, quando se afirmou a indivisibilidade e a interdependência de todos os direitos humanos. E a educação em direitos humanos passou a ser a grande responsável na formação humana pelos novos significados dos direitos humanos. 

Todavia, ao falar da história humana, sabemos que ela não é homogênea e nem um processo linear. Em tempos de transformações paradigmáticas podem ocorrer movimentos reacionários por parte daqueles que se sentem ameaçados em seu poder econômico e político. Foi o que ocorreu, por exemplo, no Renascimento, período de transição do mundo medieval teocêntrico para o mundo moderno antropocêntrico. O movimento conservador religioso da Contrarreforma reagiu de modo contundente aos novos tempos, lançando os tentáculos da Inquisição no interior da modernidade, por séculos.

Hoje vemos também movimentos ultraliberais reacionários eclodindo em muitos países. Camuflados, muitas vezes de discursos religiosos, esses movimentos conservadores têm como bandeira o direito à liberdade individual e o progresso pela competência pessoal, porém contraditoriamente negam as politicas sociais de igualdade da democracia e equidade da democracia social. Estão na contramão das transformações paradigmáticas e, portanto, das ressignificações dos direitos humanos.

A defesa e promoção dos direitos humanos – seja no plano jurídico, nos movimentos sociais ou na educação – é hoje mais do que nunca um movimento de resistência a todas as formas de autoritarismo e opressão, porém compromissado com as lutas por mudanças estruturais no modelo de civilização construído na modernidade.

Num mundo marcado por diversidades e desigualdades, o fundamento principal dos direitos humanos está na inclusão. Não está se referindo aqui ao sentido tradicional de inclusão, que coloca para dentro de um sistema excludente alguns excluídos. É colocar café no leite, querendo manter a cor do leite. Entretanto, um novo significado torna a inclusão uma referência ética e política, pois contém os principais valores dos direitos humanos: convivência na diversidade, respeito ao outro em sua singularidade, empatia, igualdade de direitos a partir da equidade, diálogo com suspensão de verdades absolutas, cultura democrática, cuidado com as diversas formas de vida planetária e muitos outros.

Num mundo em que problemas globais ameaçam o futuro da espécie humana, como vimos, a inclusão aponta uma direção ética: ou a dignidade humana é para toda a humanidade ou não será mais humanidade. A inclusão de todos sem exceção é o que nos caracteriza como humanos humanizados.

E a Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos (RIDH), em seu 10º ano,  renova, como diretriz editorial, o engajamento nessa luta, com a divulgação de pesquisas e estudos que possam contribuir para a construção de um outro mundo possível.

 

 

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RIDH 21

 

A sessão de artigos inicia com a  “Propuesta sugerida a la Educación en Derechos Humanos en America Latina en el momento presente” do pesquisador e educador chileno, Abraham Magendzo. O objetivo do artigo é mostrar que a educação em direitos humanos, na América Latina, se se pretende ser relevante e significativa, deve abordar as situações problemáticas que a sociedade enfrenta no campo social, político, cultural e económico.

Em “Multiculturalismo e o direito fundamental à educação dos povos indígenas no Brasil”, os autores Felipe Rondon, Luciani Coimbra e Antonio Aguilera trazem um estudo sobre o direito à educação, na perspectiva de uma “concepção multiculturalista de direitos humanos, que busca preservar, respeitar e incentivar uma convivência harmoniosa, valorizando suas próprias diferenças culturais” dos povos indígenas.

Analisar “a Educação em Direitos Humanos como instrumento para empoderar as mulheres com deficiência” é o objetivo do artigo “O empoderamento das mulheres com deficiência através da educação em direitos humanos”, das autoras Talita Maria Pereira de Lima e Aida Maria Monteiro Silva.

Os autores Victor Laurindo, Jenina Andrade e Helena Simões apresentam um estudo sobre a “gamificação como uma possibilidade de estratégia metodológica para a efetivação e consolidação da Educação em Direitos Humanos (EDH) na educação formal, destacadamente na educação superior”. “A gamificação como ferramenta metodológica nas práticas educativas em direitos humanos é o título do artigo”.

À luz da teoria focaultiana, Guilherme de Carvalho e Renata de Oliveira vão discorrer sobre o “objetivo da prisão e seus efeitos na subjetividade humana”, articulando-o com o direito de “Acesso dos detentos à saúde e à educação em um estabelecimento prisional”.

“O direito achado na rua: uma perspectiva para os direitos humanos e o constitucionalismo feminista” é o título do estudo que vai discutir o descompasso entre o constitucionalismo tradicional e as diversas desigualdades ainda vivenciadas por mulheres. Autores: Marina Barão, Elen Geraldes e Menelick de Carvalho.

Dimitri Acioly e Sandro Sayão colocam em análise, pela ótica da teoria crítica,  a recorrente temática do racismo estrutural em: “Violência policial, racismo e autodefesa”.

O título do artigo de Beatriz Borges, Lucas Silverio e Franciele Cardoso já revela seu assunto e abordagem: “Dupla inimputabilidade: a inexistência de políticas públicas de atenção ao adolescente infrator com transtorno mental no Brasil”.

“Direito humano à moradia: violações do Estado brasileiro à dignidade da pessoa humana” é o que Brenno Menezes e Ana Cláudia Cavalcanti demonstram nesse artigo, por meio de dados estatísticos.   

Em “FRAYBA (Chiapas/México): resistência e solidariedade em defesa dos direitos humanos dos povos indígenas”, Cláudio Rodrigues da Silva apresenta o relato de experiência de participações como voluntário em Brigadas Civiles de Observación de Derechos Humanos promovidas pelo Centro de Derechos Humanos “Fray Bartolomé de las Casas”, no México.

A RIDH 21 encerra-se com a resenha de Ermelinda Liberato, do obra Angola: A trajectória das lutas pela cidadania e a educação em Direitos Humanos. de Florita Cuhanga António. São “reflexões da autora sobre a luta dos angolanos pela cidadania e pelos Direitos Humanos”.

Os posicionamentos, contidos nos artigos aqui publicados, são de responsabilidade dos autores e autoras.

 

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Comunicado

 

A partir de 2024, a Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos (RIDH) terá nova equipe editorial. Todo sucesso e apoio a ela neste novo ciclo.

As 20 edições ininterruptas da RIDH, desde 2013, certamente trouxeram significativas contribuições para a ampliação do debate e das pesquisas sobre direitos humanos na perspectiva interdisciplinar dos novos programas de pós-graduação.

A RIDH é fruto do trabalho coletivo de muitos especialistas, com quem tive a oportunidade de dialogar e compartilhar ideias e ideais. Agradeço a parceria do coeditor e de todos/as colegas professores, alunos/as e demais profissionais que atuaram na equipe de editoração nesses 10 anos, bem como todos/as membros do Conselho Editorial, do Conselho Consultivo e dos/as pareceristas ad hoc. Enfim, agradeço todo/as os/as autores/as pelas suas contribuições e também aqueles que (ainda) não tiveram seus trabalhos publicados.

Descobri que o editor pode ser muito mais do que um administrador; ele pode ser também um orientador, um educador e, portanto, um constante educando. Foi um tempo de grande aprendizado.

Muito obrigado!

 

Dezembro de 2023.

 

Clodoaldo Meneguello Cardoso

Editor

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Publicado

04.12.2023

Como Citar

MENEGUELLO CARDOSO, C. Arcaicos tempos modernos e os direitos humanos. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, Bauru, v. 11, n. 2, p. 7–12, 2023. DOI: 10.5016/ridh.v11i2.262. Disponível em: https://www2.faac.unesp.br/ridh3/index.php/ridh/article/view/262. Acesso em: 6 jul. 2024.

Edição

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Editorial