DOSSIÊ: A literatura infantil na educação em direitos humanos: fundamentos e ideologia
DOI:
https://doi.org/10.5016/ridh.v9i1.34Resumo
Já se vão 40 anos que Maria de Lourdes Chagas Nosella publicou, pela Editora Moraes (1981), sua dissertação de mestrado com o título: As belas mentiras: a ideologia subjacente aos textos didáticos.
Dando continuidade à tarefa, que Umberto Eco e Marisa Bonazzi realizaram em livros didáticos na Europa, com tradução aqui como: Mentiras que parecem verdades (Summus, 1980), Nosella trouxe essa crítica ideológica para a realidade brasileira. Com o avanço e fortalecimento das lutas de resistência à ditadura militar e a visão da escola como aparelho ideológico do Estado (Althusser), o livro As Belas Mentiras era leitura obrigatória para o movimento de crítica e reformulação dos livros didáticos no Brasil.
Passou-se a discutir amplamente sobre os textos e ilustrações dos livros didáticos que transmitiam mensagens subliminares (algumas nem tanto) de autoritarismo, individualismo, preconceito, machismo, racismo e naturalização das desigualdades sociais. Assim, mais um movimento social de resistência anunciava novos tempos de liberdade na educação, com a alvorada da democracia que ressurgia tênue, mas insistente, no horizonte.
Os estudos críticos à ideologia conservadora dos livros didáticos, na década de 1980, fizeram contraponto aos propósitos das disciplinas: Educação Moral e Cívica, Estudos de Problemas Brasileiros e Organização Social e Política Brasileira, introduzidas pelo governo militar para preencher o vazio deixado pela supressão das disciplinas de Sociologia e Filosofia.
Dessa forma, com a retomada paulatina da democracia, fortaleceu-se a concepção de uma educação libertadora de todas as formas de opressão, fundamentada nos ensinamentos de Paulo Freire. A partir daí iniciou-se um novo ciclo de produção de livros didáticos e de literatura infantil, fazendo com que a criança e o adolescente vivenciassem também na escola aquilo que era sua vida no dia-a-dia da realidade brasileira. Surgiram histórias infantis não mais doutrinantes com a moral da história, mas sim estimuladoras – além da fantasia das narrativas e do prazer estético e lúdico da linguagem poética – de interrogações sobre as desigualdades sociais, os preconceitos, os problemas urbanos e o descaso com natureza. Tudo em nome da formação de uma cidadania crítica, participativa, autônoma e democrática.
Avançou-se muito, todavia, quarenta anos depois, os valores conservadores ainda encontram eco em boa parte da sociedade brasileira, que neles vê um acolhimento psicológico pessoal e a solução mágica de problemas estruturais como a violência, o desemprego, a pobreza e a corrupção. E com a pandemia essa postura amplificou-se mais ainda.
Neste contexto, chegam novamente às escolas projetos educacionais conservadores; entre eles retomam-se os clássicos da literatura infantil sem o devido tratamento crítico axiológico que todo material paradidático deve ter, principalmente enquanto produtos de outros tempos e espaços culturais.
Numa visão conservadora, são privilegiadas as fábulas tradicionais, para alfabetização, que transmitem pela moral da história valores de “harmonia com a identidade social” e não de “convivência na diversidade”; de “mérito individual” e não de “conquista coletiva”; de “ordem hierárquica” e não de “relações democráticas”; “de respeito aos mais velhos” e não de “respeito ao outro”; de privilégios de reis e rainhas e não de “direitos de todos”; enfim “de perpetuação da subserviência ao adulto” e não de “construção da autonomia”. Isso sem falar de quão distantes ficam nossas crianças das narrativas brasileiras produzidas pelos indígenas, negros, camponeses, quilombolas, ribeirinhos e favelados.
Daí por que se vê hoje a necessidade de reafirmar a importância de um amplo debate sobre a literatura infantil e sobre formação crítica dos professores para uso dos textos clássicos e tradicionais nos primeiros anos da educação básica. Com este propósito, a RIDH oferece nesta edição um dossiê de artigos sobre A literatura infantil na educação em direitos humanos: fundamentos e ideologia.
É na primeira infância que se constroem os alicerces das habilidades de raciocínio e da linguagem. E lá também que ocorre a gestação do desenvolvimento socioemocional, parte intrínseca e indispensável na formação da criança desde a primeira infância. Esse desenvolvimento pleno só é possível se a criança realizar as vivências coletivas que envolvam imaginação, sentimentos e valores em suas relações com o outro. Nesse campo, o recurso de contar e de ler histórias é um instrumento metodológico importante para formação de bases éticas nas relações intersubjetivas, além do desenvolvimento intelectual, linguístico e de sensibilidade estética.
Em sua origem, a contação de histórias infantis nos remete às práticas de transmissão oral primitiva de acontecimentos e de ensinamentos. Esse forte caráter educacional moral está claramente presente nas histórias infantis clássicas medievais, povoadas de castelos, reis, princesas e bruxas.
Hoje a literatura infantil, na educação escolar, ainda é uma fonte importante na construção de valores que podem moldar a primeira visão de si, do outro e do mundo em que vive. Pensar a literatura infantil na educação em direitos humanos, não é reduzi-la a “moral da história”, mas analisar as bases axiológicas das relações de dominação e de reconhecimento do outro.
Para isso o presente dossiê traz, com pesquisas e ensaios, reflexões sobre: - a pedagogia comprometida com a promoção da dignidade humana que vê na literatura infantil “material inestimável para a educação em direitos humanos”; - “a arte literária como fenômeno estético capaz de desenvolver o psiquismo infantil”; - “a fecundidade da literatura infantil para a garantia de um atendimento pleno dos direitos humanos envolvidos em situações de refúgio e migração”; “a reprodução histórica da dominação sobre o gênero feminino”, nas histórias tradicionais de bruxas; e também sobre a opressão de gênero na literatura infantil, com a “reprodução da ideologia da supremacia masculina na divisão sexual do trabalho”.
Em resumo, há uma literatura infantil com função ideológica de domesticação do outro e há uma literatura infantil literatura infantil que proporciona uma educação em direitos humanos, ou seja, vivências e reflexões de respeito à criança como sujeito construtor de valores emancipatórios de liberdade, solidariedade e igualdade entre diferentes.
ARTIGOS DIVERSOS
Nessa seção, a RIDH 16 traz 10 artigos de diferentes áreas, perpassando os direitos humanos como temática interdisciplinar e transversal.
De leituras da Filosofia temos: uma reflexão sobre a trajetória histórica do humanismo ético que deságua nos direitos humanos; e um estudo sobre as relações entre o Estado ditatorial e as violações dos direitos humanos na pandemia.
Do Direito vem um convite para a reflexão sobre os fundamentos da educação em direitos humanos a partir das teorias universalistas, relativistas e confluentes; e uma investigação sobre “as possibilidades de acesso à justiça e promoção dos direitos humanos no Sistema Interamericano a partir da criação de uma Defensoria Pública Interamericana”.
A Educação contribui com estudos que vão desde revisitações história da educação em direitos humanos no Brasil e na América Latina, passando por um estudo sobre “as estratégias internacionais de inclusão no sistema educativo em Moçambique”, até análises dos ODS da ONU e sua relação a educação em direitos humanos, e em especial com os direitos e empoderamento das mulheres, numa experiência local-global, na região Nordeste do Brasil.
A edição finaliza com a área da Comunicação que apresenta um “estudo qualitativo das representações sociais de imigrantes venezuelanas na América do Sul no período de 2016 a 2019, a partir de manchetes de notícias divulgadas em jornais digitais brasileiros”.
Boa leitura!
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Junho de 2021.
Clodoaldo Meneguello Cardoso
Editor da RIDH-Unesp
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