EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: primeiras lições
Introdução
DIREITOS HUMANOS NA ESCOLA: UM GUIA PRÁTICO PARA EDUCADORES
Quando falamos em Direitos Humanos (DH) com crianças e adolescentes, é preciso ir além das definições formais. Elas precisam entender que esses direitos não são apenas palavras em leis distantes, mas algo vivo, que afeta suas vidas diariamente. Como educadores, nosso papel é traduzir esses conceitos de maneira concreta, mostrando como eles se relacionam com a realidade das crianças e da comunidade escolar, de modo a realizar uma educação em direitos humanos (EDH).
Por exemplo: se você dá aulas em uma escola em que crianças faltam às aulas porque precisam trabalhar, ou vivem em casas sem saneamento básico, e por isso contraem doenças que prejudicam seu desempenho escolar; se na sua escola as crianças são discriminadas na sala de aula por serem portadoras de deficiências, isso são exemplos de violações de direitos que podem gerar mobilizações e ações concretas que serão exemplos de lutas por direitos.
A EDH procura construir ações que promovam o respeito à dignidade humana. Isso implica criar situações pedagógicas nas quais, por meio de ações e reflexões, sejam promovidos valores como: justiça, solidariedade, cooperação, tolerância, respeito ao meio ambiente, entre outros. Esse tipo de consciência só se constitui na educação infantil se esses valores forem colocados em prática, preferencialmente a partir de situações vividas pelas crianças, que permitem chamar a atenção para a relevância de termos cidadãos críticos, participativos e responsáveis. Efetivamente, é também fundamental que o próprio ambiente escolar se torne justo, solidário, cooperativo, tolerante etc. Trata-se de uma construção coletiva, que implica também ação coordenada dos profissionais da educação.
Neste curso introdutório à EDH, vamos tratar de 4 conjuntos básicos de direitos humanos, mostrando os conceitos em que se fundamentam e exemplos de atividades de EDH que possam ser trabalhadas desde a educação infantil até o Ensino Médio. São eles:
– Cuidar da vida;
– Convivência na diversidade
– Igualdade de direitos
– Empatia e solidariedade
* * *
O que são Direitos Humanos?
Direitos Humanos são conquistas da humanidade, frutos de lutas históricas por dignidade, igualdade e justiça. Eles não caíram do céu nem foram simplesmente “inventados” – foram alcançados através de mobilizações, protestos e mudanças sociais. Por exemplo, o direito à educação pública e gratuita, que hoje parece óbvio, foi uma vitória de muitas gerações.
No entanto, há equívocos comuns sobre DH que precisamos evitar:
- “Direitos Humanos são só para quem desrespeitou a lei” – Na verdade, eles protegem todas as pessoas, especialmente as mais vulneráveis. Pessoas que romperam leis não deixam de ser sujeitos de direitos e, nesse sentido, não defender esses seus direitos é o mesmo que abolir a ideia de que os direitos devem ser universais.
- “Já temos direitos humanos garantidos” – Se fosse verdade, não veríamos tantas crianças sem acesso à escola, moradia ou alimentação adequada. A maior parte dos direitos depende que existam forças políticas que defendam as instituições que os realizam. O direito à saúde, por exemplo, depende da existência do Sistema Único de Saúde (SUS), que financia e gerencia postos de saúde, desenvolve políticas de vacinação, mantém centros de atendimentos especializados etc. Se não há defesa política do SUS, o financiamento mingua, os serviços são precarizados e a legitimidade dessa política pública fundamental é abalada. O mesmo se dá com a educação. Direitos humanos são coisas pelas quais temos de lutar!
- “Todos concordam sobre o que são DH” – Na prática, há disputas. Alguns defendem apenas direitos individuais (como propriedade, segurança pessoal), enquanto outros lutam por direitos coletivos (como trabalho digno, terra para indígenas). A existência de diferentes dimensões de direitos humanos reflete forças sociais diversas que nem sempre têm interesses comuns. Os tratados de direitos humanos frequentemente apontam a universalidade dos direitos, e essa é uma meta a ser construída, mas não se pode deixar de constatar a distância que existe entre direitos e a realidade. É essa distância que impulsiona as mobilizações sociais que sustentam as lutas por direitos.
Como os Direitos Humanos vêm sendo construídos historicamente?
Os direitos não surgiram todos de uma vez. Eles foram sendo reconhecidos aos poucos, em resposta a demandas sociais; também aos poucos foram sendo consolidados em cartas constitucionais, leis, instituições, agências públicas etc. Sob as mais diversas formas, tanto a legitimidade como a realização dos direitos se deram de forma desigual, parcial ou problemática. Vistos historicamente, as dimensões de direitos humanos representam as perspectivas de movimentos sociais que procuraram transformar a sociedade segundo seus interesses e concepções. As dimensões descritas abaixo nos ajudam a localizar onde estão os DH na vida social e também como há grandes diferenças entre sua realização.
– Primeira dimensão (século XVIII): Direitos civis e políticos, como liberdade de expressão e voto. Esses direitos são importantes, mas considerando o movimento social em que foram gerados – a burguesia revolucionária do século XVIII -, são limitados – na prática, beneficiam homens brancos e ricos. Mulheres, negros escravizados e pobres não foram considerados na elaboração do grande documento que sintetiza esses direitos: Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, da Revolução Francesa. Não obstante, abrigam direitos importantes para fundamentar uma ordem social democrática, como o habeas corpus, o direito à divulgação de opiniões discordantes, a privacidade, o direito de fiscalizar as ações do Estado, entre outros. Além disso, o caráter revolucionário desses direitos, que aboliram a distinção social por hereditariedade que vigorava no Antigo Regime, deu impulso a movimentos sociais que lutaram contra a desigualdade social que persistiu após a revolução burguesa. Essas lutas levaram à segunda dimensão dos direitos humanos.
– Segunda dimensão (século XIX/XX): Direitos sociais, como saúde, educação e trabalho digno e outros direitos coletivos. Aqui, entram em cena as lutas dos operários por melhores condições de vida, de populações oprimidas, exploradas ou escravizadas por uma liberdade que ia além do direito de ir e vir, ou de ter propriedade privada. Dessas lutas emergiram os direitos econômicos, sociais e culturais: direito à saúde, educação, trabalho digno, lazer e descanso e cultura. Atualmente esse campo de direitos vem sendo atacado pela ideologia neoliberal por implicar uma ação direta do Estado para sua realização, mas sem esses direitos um contingente enorme da população não teria condições de ter seus filhos em escolas e ter acesso a vacinas ou tratamentos médicos, por exemplo. O direito à educação nos diz respeito diretamente, como profissionais que atuam em escolas e buscam garantir, pero próprio trabalho, a sua realização. Fica evidente que não basta ensinar conteúdos que vão formar um trabalhador, é fundamental formar cidadãos, que compreendem seus direitos e sabem defende-los. Isso se faz, idealmente, por uma prática cotidiana de defesa dos direitos humanos.
– Terceira dimensão (2ª metade do século XX): Direitos universais. Após a 2ª Guerra Mundial, foram construídos um conjunto de direitos conhecidos como direitos de solidariedade universal, pois visavam garantir o bem-estar coletivo da humanidade e a proteção do meio ambiente.
Eles abrangem questões como a paz e a segurança internacionais, a igualdade e a solidariedade entre as nações, a autodeterminação dos povos, o respeito à integridade territorial, a preservação do patrimônio histórico e cultural, o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida, e o progresso social dentro de uma liberdade ampla.
Esse conjunto de valores são princípios e propósitos da Carta de fundação das Nações Unidas, em 1945. Em 1948, a ONU publicou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) buscando expressar, num mesmo documento, os direitos humanos liberais e os direitos sociais, de que falamos. A DUDH foi a base ético-política das democracias ocidentais tanto da democracia liberal quanto da democracia social.
No período conhecido como Guerra Fria, a Assembleia Geral das ONU estabeleceu, em 1966, dois pactos internacionais: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais que revelam duas visões ideológicas dos direitos humanos, contidas na DUDH de 1948.
– Quarta dimensão (final do século XX e século XXI): Direitos Identitários. A partir dos anos 1980 foi-se delineando uma nova conjuntura histórica com: o avanço do neoliberalismo, a queda no muro de Berlim, o fim das ditaduras civil-militares na América Latina, as questões ecológicas e com a comunicação globalizada que trouxe maior consciência da diversidade da humanidade.
Essa nova conjuntura favoreceu o surgimento de um novo conjunto de valores ético-políticos a partir das lutas pelos direitos humanos de grupos considerados minoritários. Direitos identitários referem-se ao reconhecimento e garantia dos direitos de grupos sociais e indivíduos baseados em suas identidades específicas. O movimento identitário inclui as lutas, entre outras, por: igualdade de gênero, liberdade de orientação sexual, igualdade étnico racial, direitos de pessoas com deficiências, inclusão, convivência na diversidade e também a preservação da natureza.
As lutas por direitos identitários, centradas em grupos e indivíduos, tem uma forte influência da visão liberal dos direitos humanos, porém a Conferência Mundial dos Direitos Humanos da ONU (Viena, 1993) enfatizou a indivisibilidade, universalidade interdependência dos direitos humanos e o direito ao meio ambiente sustentável. Isso significa que a defesa de um direito específico deve estar inserida na defesa do conjunto dos Direitos Humanos como uma totalidade que garantem a dignidade humana como parte da vida digna planetária.
A Conferência de Viena deixou um Plano de Ação Mundial de Educação em Direitos Humanos, referência fundamental para os documentos de Educação em Direitos Humanos construídos no Brasil como o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (SEDH – 2003/2006), e as Diretrizes Nacionais de Educação em Direitos Humanos (MEC – 2012).
Esse percurso histórico mostra que os direitos humanos não são estáticos – eles se ampliam conforme a sociedade muda. O mais importante a ser considerado é que há sempre uma dimensão política da educação que nos diz respeito como cidadãos, e que nossos alunos também podem ser considerados pessoas que devem ter seus direitos respeitados e promovidos. Daí a necessidade de ensinar tanto quais são os direitos que todos temos como a capacidade de mobilizar, organizar, denunciar, protestar, enfim, de realizar ações políticas direcionadas para a garantia dos direitos, em especial daqueles considerados mais vulneráveis.
MATERIAL COMPLEMENTAR
Slides: Construção histórica dos Direitos Humanos
Direitos Humanos no cotidiano escolar
Na escola pública, lidamos diariamente com situações que envolvem direitos humanos, mesmo que não percebamos. Alguns exemplos:
– Uma criança que falta às aulas porque precisa trabalhar – Isso viola seu direito à educação e à proteção contra o trabalho infantil.
– Alunos que sofrem bullying por sua cor, religião ou identidade – Isso fere seu direito à dignidade e à não discriminação.
Como trabalhar esses temas de forma prática?
1. Usando histórias e exemplos reais
Crianças entendem melhor quando relacionamos os direitos a situações concretas. Podemos usar:
– Contos infantis: “João e o Pé de Feijão” pode virar uma discussão sobre desigualdade (por que o gigante tinha tanto e João tão pouco?).
– Notícias adaptadas: Mostrar casos reais (como uma comunidade que conquistou água potável) ajudem a ver que direitos humanos são lutas reais.
– Memória social e pessoal: resgatar apagamentos de situações de violência do passado e como elas ecoam atualmente (o preconceito racial, por exemplo).
- Projetos colaborativos
– “Nosso Mapa dos Direitos”: Os alunos identificam, no bairro, onde direitos são respeitados ou violados (ex.: praça bem cuidada x lixo acumulado).
– “Carta de Direitos da Turma”: A sala cria suas próprias regras de convivência, discutindo o que é justo e como resolver conflitos.
– “Painel com notícias sobre direitos humanos”: em local visível, afixar notícias, imagens, textos que trazem situações que envolvam direitos humanos, pareando as situações retratadas com as declarações, resoluções ou leis que embasam a superação da violação específica. - Debate com situações-problema
Situações de conflito são ótimas oportunidades para mediar as disputas entre as crianças pela criação de tribunais ou debates públicos, orientando a elaboração de regras para o convívio convergentes com os valores da EDH: tolerância, diversidade, justiça, colaboração etc.
Pode-se também partir de perguntas como:
– “Se uma colega é proibida de participar de determinada brincadeira porque é menina, isso é justo?”
– “O que fazer se um amigo não tem material escolar?”
Isso estimula a reflexão sobre igualdade e solidariedade, permite que as crianças superem a visão de que as leis e a sociedade são “naturais”, estimula a capacidade de pensar sobre como mediar conflitos na vida real e torna cada criança um legislador de sua própria conduta em ação solidária com seus pares. - Sugestão final de atividade: debate a partir de pesquisa
– “Pessoas notáveis na história dos Direitos Humanos” como: Herbert José de Souza (Betinho), Chico Mendes, Maria da Penha, Malala, Mandela, Mahatma Gandhi e outras personalidades defensoras dos direitos humanos. “O que podemos fazer hoje, na nossa escola, para continuar essas lutas?”
Desafios e Caminhos
Trabalhar direitos humanos na escola não é fácil. Encontramos resistências, como:
– Falta de recursos: Como falar em direito à educação se faltam livros e professores?
– Famílias desinformadas: Muitos pais não conhecem seus direitos e reproduzem preconceitos.
– Violência estrutural: Crianças que vivem em situações de risco precisam de mais que discursos.
Mas há saídas:
– Parcerias com assistentes sociais e conselhos tutelares para casos graves.
– Rodas de conversa com as famílias, mostrando como direitos humanos beneficiam a todos.
– Projetos que unam escola e comunidade, como hortas coletivas ou mutirões de limpeza.
EXERCÍCIO COLETIVO: converse com colegas professores e procure identificar problemas ou situações em sua escola que envolvam violações ou problemas com os direitos humanos. Elabore com eles atividades específicas em relação às situações-problema identificadas. Os gestores têm papel fundamental nesse processo, acolhendo e estimulando as iniciativas dos professores.
Conclusão: Direitos Humanos como prática diária
Direitos Humanos não são um tema para ser debatido apenas em datas específicas. Eles devem estar vivos no cotidiano da escola, na forma como tratamos os alunos, resolvemos conflitos e exigimos melhorias.
Quando uma criança entende que tem direito à educação, à alimentação e ao respeito, ela se torna capaz de exigir essas condições – não só para si, mas para todos. E esse é o maior papel da escola: formar cidadãos que conhecem seus direitos e lutam por um mundo mais justo.
MATERIAL COMPLEMENTAR
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