Antonio Sardinha e Verônica Lima
O debate sobre políticas de comunicação ganhou novo eco por questões conjunturais. A pauta reapareceu com força nos últimos dois meses, sobretudo com o debate sobre a criação dos conselhos de comunicação social no Nordeste e com as expectativas para a área de comunicação no próximo mandato presidencial.
Somadas a isso, estão repercussões para a iniciativa da Secretaria de Comunicação da Presidência da República em discutir e enviar ao Parlamento projeto de lei para atualizar marco regulatório para a área de comunicação.
O tratamento da questão pelos meios de comunicação, no entanto, ainda é o mesmo: a viciada tentativa de confundir liberdade de expressão e de imprensa e o direito à informação com o direito à comunicação. Aproveitar-se da confusão para legitimar a proposta do mercado de mídia para organizar políticas públicas é a maneira aparentemente democrática para ocultar a lógica de construção das políticas de comunicação no país.
Dessa efervescência em resgatar velhas e tradicionais preocupações, o controle e a censura substanciam o imaginário do medo para tratar da questão. É a mesma lógica conservadora usada para fazer da opinião pública uma fábrica de consensos para temáticas que fogem da regulação nas arenas de discussões formatadas pelos configurados formadores de opinião. Quando não é possível monopolizar o agendamento (silenciamento) da pauta, reagenda-se sob nova perspectiva, com dispositivos do discurso que coloca o debate sob controle.
Ficam quase imperceptíveis as contradições nesse cenário. Deixamos, portanto, a indicação para os “dois pesos e duas medidas” e o que entendemos estar permeando essa nova preocupação dos grandes meios com a área de comunicação. De um lado, o movimento sem volta trazido pela inédita Conferência Nacional de Comunicação, de consolidação de um contra-discurso no interior do próprio Estado para o Direito e as políticas de comunicação. Do outro, a consolidação das disputas cada vez mais acirradas nos sistemas de mídia, tendo como campo privilegiado a internet.
Confecom e a agenda política das comunicações
A Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) foi disputada pelos movimentos sociais e organizações da sociedade civil como uma arena legítima para demandar simbolicamente um outro sentido e lugar para a comunicação no escopo das políticas públicas.
A proposta de fundo, ao menos na perspectiva de alguns ativistas dos movimentos organizados da sociedade, foi reafirmar politicamente uma idéia menos instrumental para o direito à comunicação, não mais atrelada a um paradigma informacional, restrito ao direito à informação.
Desde o histórico relatório McBride, divulgado pela Unesco, desnudou-se que a desigualdade nas relações e trocas econômicas entre os países não foge do desequilíbrio dos fluxos de informação. Por trás do poder econômico e político, a hegemonia da produção e circulação das trocas informativas.
O direito de informar é peça-chave de uma disputa por poder que se faz como parte (e no exercício) do direito à comunicação. Restringir a informação a uma mercadoria tecnicamente apta a ser oferecida por empresas de mídia foi a tônica que desacredita a comunicação como direito humano e tira do Estado o papel de garantir esse direito para além do papel legal, atrelado à manutenção das liberdades fundamentais.
A Confecom foi um marco político nesse sentido, não apenas pela canalização e agendamento público e amplo de demandas históricas dos chamados movimentos pela democratização da comunicação, como abriu possibilidades para reconfigurar essa concepção hegemônica (e restrita) do direito à comunicação.
Os desmembramentos também políticos da conferência, como são os conselhos, acabaram surpreendendo pela capacidade de instituir de modo muito prático esse discurso político que os grandes grupos de comunicação entenderam estar neutralizado pela cobertura agressiva contra a própria conferência, estigmatizada por esses mesmos grupos como um espaço partidário de uma esquerda arcaica com desejo pelo controle de liberdades.
É nesse contexto que o sentido para implantação dos conselhos de comunicação no Ceará, Alagoas, Bahia e Piauí acabam neutralizados pelo discurso hegemônico da grande imprensa.
O sentido dos conselhos é garantir a natureza do direito à comunicação, ignorado muitas vezes, quando tratado exclusivamente como serviço prestado por empresas de mídia. O direito à comunicação também é o direito da sociedade e de seus grupos organizados de participarem da produção de sentido e das disputas que essa participação favorece, tendo a autonomia para discursivamente se inscrever nas arenas públicas sem a mediação e instrumentalização dos grandes meios de comunicação.
Comunicar-se, acessando e apropriando das tecnologias, em uma sociedade midiatizada acaba sendo uma prática cultural associada a um contexto de disputas que envolvem a afirmação e reconhecimento de identidades e de cidadania de sujeitos e grupos sociais na sua pluralidade e diversidade.
Essa concepção não pode ser feita sem a participação social e do Estado em espaços democráticos para pensar a ampliação do direito à comunicação e o fomento público a essa prática. Os conselhos representam, nada mais nada menos, que os espaços definidores das políticas públicas, consagrados, aliás, por uma série de outras áreas, como as políticas públicas da saúde, educação, assistência social, trabalho e geração de renda, habitação, entre outras.
AI-5 digital e a restrição de liberdades
Se a regulação assusta as empresas de mídia, ela não parece causar o mesmo espanto desses mesmos veículos quando pensada para o espaço virtual. Fora das manchetes, avança o projeto de lei de regulação, o chamado AI-5 digital, relatado e defendido pelo senador reeleito Eduardo Azeredo (PSDB-MG).
Os aspectos contemplados no texto do projeto, que já foi aprovado em duas Comissões da Câmara – Constituição e Justiça e também Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado – concentra-se, em linhas gerais, no controle das informações e registros de acessos na internet. O projeto aguarda o parecer da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara.
A referência ao Ato Institucional, que recrudesceu o radicalismo e a violência da ditadura militar brasileira, é justificada pelo fato de que o projeto dá margem à violação de direitos civis, como a divulgação de dados dos internautas ao Ministério Público e quebra de sigilos, sem a necessidade de autorização prévia da Justiça.
O fato de a questão ser ignorada pelo debate público midiático revela uma outra forma estratégica de se esvaziar e até confundir a discussão política em torno da questão do direito e da liberdade de informação e comunicação. Como os meios de comunicação enquanto instituições disputam em todas as frentes, inclusive dentro do que Cardoso (2010) classifica como Sistema de Mídia, oculta-se uma disputa em torno da regulação da internet envolvendo as próprias mídias.
As corporações midiáticas, que recorrentemente se colocam como “guardiãs” da liberdade de expressão, sobretudo nos casos de discussões sobre a regulamentação do controle social, adotam uma postura dúbia. Em tempos de convergência, acentuam-se as divergências sobre a sobrevivência e escopo dos modelos de negócio. É esse aspecto que orienta a disputa dos meios com a sociedade, a partir do uso e esvaziamento do direito à comunicação.
Omitir a discussão sobre os termos em que está proposta a regulação na internet revela como a suposta defesa dessa liberdade é carregada de interesses e parcialidades, a ponto de desprezar a intenção explícita no projeto de atentar contra os princípios democráticos de privacidade e liberdade individuais e, indiretamente, contra os direitos à cultura, educação e ao conhecimento, possibilitados pela apropriação do espaço da internet.
Além de o texto ser permissivo quanto à violação de sigilo, já que determina aos provedores o armazenamento e a disponibilização dos dados dos internautas por um período de até três anos, toca num ponto polêmico e delicado ao criminalizar o fornecimento não autorizado de informações ou dados. Essa medida pode ter dúbia interpretação e atentar contra práticas comuns, como os textos e as publicações de blogs, a reprodução de imagens e a produção de conteúdo nesse espaço de contra-opinião das esferas virtuais.
Soma-se a isso o fato de que este ponto do projeto ignora todos os avanços já obtidos em torno das questões de softwares livres e creative commons, que se baseiam justamente no compartilhamento de informações de forma livre, com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento e democratização de conhecimentos, inovação e produção cultural.
Em última instância, o projeto se caracteriza como mais uma tentativa de se institucionalizar a ideia restrita do direito à comunicação. Neste caso, o espiral de silêncio da grande mídia sobre o caso é estratégica por evitar que venha à tona a contradição de suas defesas sobre a liberdade: não se pode interferir na imprensa, baluarte da ‘boa’ informação, mas a intervenção individual nos conteúdos produzidos pelos internautas parece tolerada em nome da garantia dessa liberdade.
Essa contradição revela que a proposta de regulação está fundamentada em uma ideia também confusa da própria função do Estado na questão. Nesse contexto, seria função estatal cobrar dos provedores e grandes conglomerados da internet o registro, vigilância e disponibilização dos dados dos internautas ou o desenvolvimento de mecanismos e ferramentas de proteção da navegação, como as assinaturas digitais, a fim de evitar e coibir práticas que atentam contra patrimônios intelectuais, materiais e morais?
A resposta a essa questão nos leva a mais uma observação. A proposta privilegia uma perspectiva privada de acesso e utilização da internet, não apenas por defender a individualização dos crimes cometidos na web à custa da violação de sigilos, mas também por se furtar da cobrança legítima que o Estado deveria fazer aos provedores por apoios e investimentos na área da internet. A justificativa inicial dessa cobrança poderia ser a contrapartida das empresas em relação à exploração comercial do mercado informacional brasileiro, o que não representa pouco: dados do Ibope revelam que, em 2009, o país contabilizou 66,3 milhões usuários da web.
Coincidentemente, a mesma mídia que ignora todas essas questões envolvidas na votação do projeto de regulamentação também atua e tem interesse na internet, sendo os grandes jornais impressos e revistas também responsáveis pelos principais portais de notícias do Brasil.
Considerações finais
As disputas dentro do Sistema de Mídia, as tentativas de manter o caráter negativo da política de comunicação (o Estado apenas regula sem intervenções para garantir o direito à comunicação) e a tentativa de sustentar uma lógica econômica para democratização e socialização dos sistemas de mídias são questões de fundo para o debate sobre políticas de comunicação.
O cenário fica ainda mais complexo com a intensificação das disputas, tendo a campanha eleitoral que se encerra como termômetro para dar o tom das disputas futuras em torno dessa área.
As estratégias de abordagens dos temas, como já explicitado ao longo deste artigo, são conduzidas de acordo com os interesses em cada questão, no mais conhecido estilo “dois pesos e duas medidas”.
A diferença é que atualmente o debate sobre a comunicação de modo mais amplo e na perspectiva dos direitos humanos ganha a agenda pública no interior do Estado, o que só aumenta a tensão e as disputas, antes restritas a uma esfera nada pública de negociação.
Referências
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CARDOSO, Gustavo. Da comunicação em massa à comunicação em rede: modelos comunicacionais e a sociedade de Informação. In MORAES, Denis de (org). Mutações do visível – da comunicação em massa à comunicação em rede. Rio de Janeiro: Pão e Rosa, 2010.
FELITTI, Guilherme. Brasil atingiu 66,3 milhões de internautas em 2009. IDG Now. Disponível em http://idgnow.uol.com.br/internet/2010/02/10/brasil-atingiu-66-3-milhoes-de-internautas-ativos-em-2009/ Acessado em 20/11/2010.
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RAMOS, Murilo César. Sobre a importância de repensar e renovar a idéia de sociedade civil. In: RAMOS, Murilo César; SANTOS, Suzy dos (orgs). Políticas de comunicação: Buscas teóricas e práticas. SP: Paulus, 2007.