A singularidade e a diferença no discurso jornalístico


Antonio Sardinha


O conhecimento singular elaborado pelo jornalismo (Genro Filho, 1987; Meditsch, 1992) e as implicações técnicas e estéticas que essa compreensão traz ao fazer jornalístico representam uma indicação para pensar eventuais crises especuladas com o advento das novas tecnologias, o reordenamento do modelo de negócio e as muitas indicações para o que se configura como as encruzilhadas desse campo profissional na contemporaneidade.

Se os jornais impressos estão sofrendo com a concorrência das novas mídias, se carecem de meios para transformar a credibilidade, seu mais importante capital, em um discurso substancial e legítimo para conquista de leitores, exigentes pela interpretação e compreensão dos fenômenos narrados de fenômenos, um aspecto ainda parece intocável.

A questão é compreender a natureza do conhecimento gerado pelo jornalismo, em meio à informação e conhecimentos de natureza diversas, pulverizados e confundidos na ausência de referências para uma geografia intelectual identificada por Wolton (2006) a partir da existência de três discursos que organizam trocas simbólicas: o discurso da informação, o discurso do conhecimento e o discurso da ação.

Diferentes discursos

Essa confusão de âmbito normativo em meio à construção, difusão e apropriação dos discursos informativos, elaborados em parte pelos jornalistas; do discurso do conhecimento científico, jurídico, administrativo, médicos e do discurso da ação dos espaços e instituições políticas, embolados no paradigma difusionista propagado pelo avanço das tecnologias, pulverizam e desafiam no espaço da comunicação os estatutos que colocam cada discurso em seu respectivo lugar como condição simbólica para a sociabilidade.

É nesse sentido que retomamos o que estruturalmente marca o fazer jornalístico e, com isso, procuramos entender sua legitimidade discursiva diante da midiatização da existência. Parece que marcar e enquadrar a singularidade do conhecimento que emana da prática jornalística é avançar na busca por uma identidade que não está exclusivamente ancorada em funções históricas que lhes foram (auto) atribuídas. Chamar para si a responsabilidade pela construção para vigiar a democracia; gozar de relativo monopólio de mediação na consolidação da opinião pública ou brigar pelo legítimo papel de informar são todos aspectos que, por si só, não garantem ao jornalismo sobrevida discursiva. O jornalismo parece preso à pirâmide invertida que organizou não só um modo de representação do mundo, como também uma racionalidade (restrita) na apreensão de fenômenos sociais.

Medina (2008) aponta para um déficit de abrangência da narração que sai das redações. Sem desconsiderar que outras narrativas, inclusive as tradicionais narrativas científicas, tem tido dificuldades para imprimir inteligibilidade que dê conta de compreender os processos sociais, o jornalismo parece não reconhecer limitações na apreensão do mundo que ele mesmo torna noticiável. A resposta vem com mudanças na forma e não no conteúdo. As recentes alterações gráficas feitas sob medida e em cascatas por grandes jornais só denunciam a dificuldade que se tem de perceber a crise de legitimidade do discurso jornalístico.

Esfera pública

Evidente que o déficit de abrangência, que compromete o jornalismo como espaço de relativa importância na construção de uma esfera pública crítica capaz de refletir conflitos que permeiam o jogo de forças das mais variadas matrizes, não se resolve com fórmulas que ensinam deixar a escrita jornalística mais atrativa ou seu conteúdo mais apresentável. A questão é ainda mais ampla e sugere como é possível perceber e pautar a singularidade de fenômenos sociais e organizá-la em uma linguagem inteligível na busca pela árdua tarefa de elucidação.

Em linhas gerais, a questão de fundo é saber como tratar a singularidade do fenômeno noticioso com potência em si para buscar o contexto do particular e do universal, sem reduzir a sua natureza plural, no processo de disputas que é a elaboração da notícia – entendida não como um gênero jornalístico, mas como a socialização quaisquer informações de ca­ráter público, atual e singular e que atendem a diferentes interesses (SILVA, 2009).

A homossexualidade no jornalismo

A tentativa de pontuar algumas das questões elencadas acima, a partir das breves considerações apresentadas sobre o jornalismo no tempo presente, toma como referência uma breve análise de matéria, de conteúdo frio (atemporal) produzida para uma das edições do caderno semanal Segunda-Feira, publicado pelo Jornal da Cidade (Bauru).

A publicação, com características que a aproximam de uma revista, circula às segundas-feira e tem versão disponível em formato digital. Procura trabalhar temas ligados à saúde, comportamento e esporte. É uma tentativa de fugir da perspectiva meramente noticiosa dos demais cadernos do jornal, o que fica evidenciada pela construção de reportagens elaboradas fora do formato do lead e da pirâmide invertida.

Uma das edições (12/04/2010) traz como destaque de capa o debate sobre homossexualidade. Aproveitando a repercussão do anúncio público do cantor Rick Martin sobre sua orientação sexual, a reportagem, de quatro páginas, permeada por recursos como infográficos, fotografias e ilustrações, propõe discussão sobre dificuldades de “saída do armário” vivenciada por adolescentes e jovens e, por conseqüência, pauta um tema que é tabu na sociedade.

Fenômeno social

Até então, trata-se de uma proposta interessante e uma possibilidade para o jornalismo de observar um fenômeno social complexo como é a homossexualidade. E foi a isso que se resumiu a reportagem. Sem compreender como acessar pelo discurso jornalístico o debate sobre a questão, a produção ficou restrita a estereótipos e clichês típicos de um suposto gênero diversional, encontrado nas matérias da linha “Comportamento”. A singularidade se restringiu ao olhar, mas não se traduziu na abordagem e na construção da compreensão do fenômeno. Vejamos.

Quando o pressuposto que ancora o discurso não enquadra o que se que falar sob a ótica do singular, o peculiar se perde na limitação da própria abordagem jornalística que, ao contrário da ciência, foge da busca por esquemas universais para compreender o mundo. Nesse caso, o jornalismo, que contraditoriamente transita no espaço do senso comum na tentativa de superá-lo, fica refém da singularidade que caracteriza seu discurso.

A abordagem singular torna-se ponto de chegada e não partida. E sob alicerces precários apresenta sua narrativa.  O diferente — com suas peculiaridades e aspectos — apreendido sob pressupostos já comprometidos pelo olhar que pauta a questão, torna-se exótico. Nesse caso específico, o jornalismo que do universo social vivido salienta fenômenos singulares, ao mesmo tempo únicos e exemplares fica comprometido com o discurso que se propõe e que, por conseqüência o caracteriza.

O que estamos reiterando como seu componente mais elementar, a singularidade em abordar, que na reportagem orbita em torno da vivência da homossexualidade em uma fase peculiar como a adolescência – acaba não se traduzindo em novidade, ao contrário, é descontextualizada e atrelada a uma angulação individual que busca para uma pretensa universalidade. A comumente “saída do armário” e afirmação da (homo)ssexualidade é uma ação progressiva, com regras previsíveis com uma lógica parecida para todos os meninos e meninas homossexuais em todos os lugares. Simplesmente um fenômeno naturalizado e normalizado sabe-se lá com base em que critério.

História e imaginário

Parte-se do lugar comum para chegar a lugar nenhum. O discurso se reduz à especificidade da questão da homossexualidade juvenil em questão a-histórica, individual, privada e cultuada pelo imaginário da patologia e da moralidade, duas matrizes que ao longo do tempo impediram que se pensassem a expressão pública da sexualidade como direito. Nada a declarar na matéria-tese formulada por hipótese falível.

O fenômeno, singularizado pela experiência juvenil em torno da homossexualidade e suas implicações sociais, que tem na cultura fonte de significação da questão, acaba reduzido a um mero fato jornalístico na reportagem em que o jornalista é apenas um organizador de falas reproduzidas sem reflexão das fontes consultadas. A inscrição autônoma do discurso jornalístico é quem conduz a medição dos demais discursos competentes e não o contrário.

A narração fica dependente do especialista para legitimar a abordagem e acaba valorizando exclusivamente a especialidade que costumeiramente trata a questão, a psicologia. Essa opção denuncia o pressuposto ou ponto de partida. A homossexualidade é uma questão de comportamento, que precisa ser explicado por fugir de um padrão-referência, implicitamente apontado nos destaques dados às tentativas de se saberem a origem, busca por causas e efeitos dessa prática pela consulta ao especialista. Esquece-se das contribuições contrárias construídas por outras áreas de conhecimento e peca por não apontar as limitações que a própria psicologia realiza dentro de seu próprio campo sobre o assunto, em uma tentativa de contribuição para atualizar a compreensão distorcida sobre a questão, historicamente tratada como patologia, desvio e pecado pelos discursos médicos, legais e religiosos.

Conclusões

A ausência de histórias e personagens para marcar o mundo da vida como a referência discursiva ao jornalismo revela a dificuldade em compreender o singular como categoria para discursar própria desse campo. Fala-se da homossexualidade juvenil, mas os adolescentes e jovens sequer são chamados a falar. Decididamente, há uma tese que precisa ser apenas comprovada pela eleição e controle de quem discursa.

A linguagem do conflito, estruturalmente a linguagem jornalística que singulariza para exercer a representação, mais uma vez fica refém do discurso que tenta se validar por esquemas que suprimem a singularidade de fenômenos como possibilidade para compreensão do mundo com a equivocada busca pela universalidade, uma lógica que não é jornalística. Resultado: abordagens totalizantes distantes de uma compreensão mais democrática de um fenômeno de natureza plural, mas muito próxima da ignorância, o substantivo que permeia o senso comum.

Referências

GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide – para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre. Editora Tchê: 1987.

MEDITSCH, Eduardo. O conhecimento do jornalismo. Florianópolis: Ed. UFSC, 1992.

MEDINA, Cremilda. Déficit de abrangência nas narrativas da contemporaneidade. Matrizes, Ano 2, N.1, jul/dez 2008.

SILVA, Gislene. O fenômeno noticioso: objeto singular, natureza plural. Estudos em Jornalismo e Mídia – Ano VI – n. 2 pp. 09 – 15 jul./dez. 2009

WOLTON, Dominique. É preciso salvar a comunicação. São Paulo: Paulus, 2006.


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