A invisibilidade de morar na rua em Ipanema


Taís Capelini

 

Às vésperas do início da Copa do Mundo 2010, a revista Piauí trouxe como tema central de sua edição uma situação que inúmeras vezes é considerada “invisível aos olhos”: a condição de quem vive nas ruas.

A reportagem “Morar na rua em Ipanema”, de Paula Scarpin, procura ressaltar quem são os mendigos que habitam um dos bairros mais ricos do Brasil e como o poder público se relaciona com eles.  O resultado é interessantíssimo, pois traz relatos dos próprios moradores de rua do Rio de Janeiro, de assistentes sociais e do prefeito da cidade, Eduardo Paes.

Desses depoimentos, emerge uma questão de importância a respeito de uma sociedade que, em diversos momentos, enxerga o “outro” como sinônimo de “sujeira” e “impureza” e, por isso, passível de “descarte”. Ou seja, o problema de uma sociedade pautada em conceitos de “ordem”, “limpeza” e “beleza”, os quais justificam a exclusão daqueles que não se enquadram nesses pressupostos.

Em virtude dessa demanda ”ordenadora” ou, nos termos de Max Weber, dessa “higienização social” surgem ações restritivas que estimulam o aumento dos preconceitos e das inseguranças sociais. É o caso do Choque de Ordem posto em prática desde o início de 2009 pelo atual prefeito do Rio. Essa política sob as promessas de “limpeza urbana” faz com que, entre outras medidas, os indivíduos considerados desagradáveis sejam impedidos de ocupar os espaços públicos por meio de ações coercivas, ou ainda, que sejam descolados para lugares distantes dos grandes centros urbanos, longe dos olhos dos cidadãos mais abastados.

De acordo com a matéria, uma das atitudes tomadas para isso foi a tentativa de alojar os moradores de rua em abrigos, os quais nem sempre têm estrutura ou capacidade suficiente para abrigá-los: “na ala feminina, só as grávidas, as idosas e as com problemas psiquiátricos tinham uma cama garantida. Numa noite, em uma operação com três ônibus, o Choque de Ordem recolheu 130 mendigos em Copacabana. Não havia cama para nenhum deles no albergue da Praça da Bandeira”.

De acordo com o depoimento de um ex-funcionário do abrigo, o prefeito Eduardo Paes, ao passar pela frente do albergue da Praça da Bandeira, ficou assustado com a quantidade de mendigos do lado de fora e “no dia seguinte, o Choque de Ordem já levava as pessoas para o abrigo Stella Maris, na Ilha do Governador”. Segundo os dados da matéria, “o Stella Maris fica perto do aeroporto do Galeão, a 24 quilômetros de Ipanema. O prédio está a uma quadra da subida do Morro do Barbante, há anos controlado por milícias, numa área com pouco trânsito de pessoas e carros”.

Outro dado preocupante diz respeito ao depoimento dado em 1997 pelo secretário de Segurança do Rio na época, o general Nilton Cerqueira, que afirmou que “só com atos violentos poderíamos livrar a cidade de mendigos”. No ano posterior, o ex-prefeito Cesar Maia teria dito que usaria desinfetante (creolina) como meio de tirar os mendigos das ruas da cidade. O composto químico teria sido fato utilizado em alguns pontos onde a concentração de moradores de rua era mais expressiva, a aplicação teria sido suspensa diante dos protestos da oposição.

A prefeitura atual também tomou atitudes no sentido de repelir os mendigos. Uma delas foi a fixação de pedras de concreto pontiagudas embaixo de todos os viadutos da avenida Presidente Vargas, ao longo de túneis acerca do Sambódromo e na praça Carlo del Prete, em Laranjeiras. No centro da cidade, foram colocadas estruturas de ferro nos bancos da Praça da Cruz Vermelha com o intuito de impedir que as pessoas deitem sobre eles.

Sobre esse assunto, o defensor público do Estado Leonardo Rosa Melo, em depoimento à reportagem, afirma que atitudes como essas “são medidas discriminatórias travestidas de disciplinamento do espaço público” e acrescenta em ultima instância que essa “é uma política belicista de coação da pobreza”.

É notório o fato de que as tentativas de “limpeza” da sociedade acarretam na repulsa aos indivíduos que não se encaixam nos padrões sociais dominantes. Dessa forma, enquanto as intervenções da administração pública voltam-se para a proteção de uma camada da sociedade, são, ao mesmo tempo, totalmente omissas com as demais.

Nós, como cidadãos e seres humanos, não podemos tomar parte desse tipo de atitude e aceitar como normal a subjugação e desumanização do “outro”, que em situações extremas de descaso alheio torna-se “invisível”.

A questão, como bem colocou o assistente social Marcelo Jaccoud, é: “estamos fazendo isso tudo para quem? Para a pessoa que está na calçada ou para quem mora no prédio em frente à calçada? Na lógica da assistência social, quem deveria ser o foco principal do trabalho é o morador de rua”.



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