‖ ‖ ‖ Cinthia Quadrado ‖ ‖ ‖
Lançado em março, o minidocumentário “Morri na Maré” faz parte de uma série de reportagens coordenadas pela Pública – Agência de Jornalismo Investigativo e bancadas por financiamento coletivo (crowd funding). O foco é a Comunidade da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, pelo olhar de suas crianças.
Diferentemente de outras produções jornalísticas em que o interlocutor é o profissional da comunicação, a produção se caracteriza pela ausência da fala do jornalista. As técnicas de gravação e edição privilegiam a perspectiva das crianças, que envolvem seus colegas, a vida familiar e o dia a dia. Segundo os próprios jornalistas, “mostrar o olhar das crianças e deixá-las falar por si mesmas foi a forma narrativa que escolhemos para não acrescentar o preconceito embutido na nossa voz”.
As cenas iniciais retratam um mar vermelho na Praia de Ipanema, uma metáfora do “mar de sangue” citado pelo artista plástico Ronald Duarte. Uma placa alerta: “perigo: preconceito”. Sucedem-se imagens de crianças caídas. A abertura anuncia: “Morri na Maré ontem. O próximo ‘vândalo’ pode ser você”.
O primeiro depoimento é o da moradora Rachel, colhido durante uma manifestação feita pela comunidade em 25 de junho de 2013. Ela fala sobre ação da polícia de entrar na favela e querer restringir a movimentação dos moradores. Segundo Raquel, os policiais teriam dito que “ninguém entraria ou sairia do lugar, por isso eles estavam fazendo uma rebelião”. Naquele dia, 13 moradores e um sargento do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) foram assassinados.
Gravadas em julho, imagens lembram a homenagem aos mortos. Eliana Sousa da Silva, diretora da ONG comunitária Redes de Desenvolvimento da Maré, expõe sua indignação. “A maioria das mortes não foi em confronto. A polícia entrou nas casas e executou as pessoas”.
Cláudio Rodrigues, motorista de van, foi baleado nas costas. Esposa e filho relatam o caso. Se não tivessem recuado diante da presença dos policiais, também poderiam não estar vivos.
O filho, de 15 anos, conta o drama. “Ele foi para o trabalho cinco horas da manhã e o policial questionou por qual motivo ele estava saindo de casa. Daí eles já estavam no beco e o policial matou ele”.
O depoimento de crianças do Projeto Uerê, que assiste vítimas da violência, retrata o clima. “Do que você tem medo?”, o jornalista quer saber. “De sair na rua e não voltar nunca mais”.
Um menino diz que viu policiais interrogando ladrões em um beco. “Escutei três tiros. Parece que estourou a cabeça”, relata.
As imagens focalizam detalhes dos rostos, mãos, olhos, além de mostrar os policiais e os adultos de uma perspectiva diferente da tradicional, expondo aquilo que muitas das crianças podem ter visto e acompanhado.
Na escola, a câmera foca crianças desenhando o que gostam e não gostam na Maré. Muitos dos traços retratam os traficantes, as drogas, a favela e os carros da polícia conhecidos como ‘caveirões’. Essa situação retoma a ideia de que essas crianças vivenciam a violência como se ela fosse comum, recorrente. A partir desse trecho do documentário, elas não falam. A representação expõe uma realidade triste.
Na parte final, a campanha do Observatório de Favelas traz uma iniciativa para a conscientização sobre a violência. “O jovem negro tem quatro vezes mais riscos de morrer por balas do que um jovem branco”, sustenta a reportagem. “As crianças sofrem até não querer mais viver em casa e fogem para a rua”, diz Valmir Succo, porta-voz da campanha. Uma criança conta que os policiais “batem na gente do nada” e mostra uma cicatriz na perna. “A polícia fez isso aqui”.
Nos 17 minutos de documentário, vemos histórias de pessoas que trabalham, estudam e vivem em suas comunidades, mas não têm seus direitos respeitados.