‖ ‖ ‖ Deborah Cunha Teodoro ‖ ‖ ‖
“É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, dispõe o artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal de 1988. Entretanto, nem tão livre assim, uma vez que muitos obstáculos têm cerceado o seu exercício, com destaque para a violência praticada contra profissionais que utilizam a liberdade de expressão como ferramenta de trabalho. Violência que tem resultado em mortes, como a dos radialistas Jefferson Pureza Lopes, Jairo Sousa e Marlon Carvalho, executados em 2018 por exercerem este direito ao criticarem e denunciarem irregularidades praticadas por autoridades públicas e políticos locais. Em 2017, um jornalista já havia sido morto por desempenhar a função de informar.
Os três assassinados no ano passado correspondem ao perfil das vítimas brasileiras: comunicadores, geralmente radialistas, de cidades pequenas do interior do país, conforme constatado pelo relatório do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ). Os radialistas executados, que atuavam longe das metrópoles, já haviam sido ameaçados anteriormente, mas não levaram a sério o risco de morte e não se calaram.
Além das três mortes, 114 casos de violência não letal, envolvendo pelo menos 165 profissionais e veículos de comunicação, foram registrados pelo relatório anual de violações à liberdade de expressão divulgado pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). São agressões físicas, como empurrões, socos e pontapés, ameaças, ofensas, ataques de vandalismo, intimidações, roubos e furtos, atentados e casos de assédio sexual, todos detalhados neste levantamento. Crimes virtuais e decisões judiciais, não contabilizados na categoria de violência não letal, encabeçam outros episódios de violação à liberdade de expressão e imprensa no país. As informações apresentadas pelo documento foram categorizadas e dispostas em gráficos, nos quais estão listados a região geográfica com a respectiva indicação dos estados federativos que sofreram as violações, o sexo, a editoria e o veículo de comunicação das vítimas, bem como a autoria da infração.
Interesse público
O relatório destaca a relevância do assunto para um país democrático como o Brasil e ressalta fatos de interesse público que estiveram em evidência no ano passado, como a greve dos caminhoneiros, a condenação e prisão do ex-presidente Lula e as eleições presidenciais, que geraram desconforto para profissionais da comunicação, tratados como alvo em episódios de agressões durante o trabalho. A intolerância e a falta de conhecimento do real papel da imprensa geraram um ambiente hostil e truculento contra as mídias local e nacional, prejudicando o direito do cidadão brasileiro de ser informado sobre assuntos que impactam diretamente o seu cotidiano.
Embora o destaque seja para a realidade brasileira, o documento da Abert também traz dados internacionais, como o índice de impunidade diante dos casos de violência contra o comunicador, em diferentes países, e cita o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, morto no consulado da Arábia Saudita, em Istambul, na Turquia, caso com ampla repercussão na mídia no ano passado. Khashoggi foi brutalmente assassinado, em outubro de 2018, quando resolvia questões burocráticas para o casamento com uma turca. Colaborador do jornal norte-americano The Washington Post, o colunista saudita criticava o regime de governo e denunciava os obstáculos a uma imprensa livre em seu país. “O que o mundo árabe mais precisa é de liberdade de expressão” foi seu último artigo, publicado logo após sua morte, e analisava o relatório anual “Freedom in the World” (“Liberdade no Mundo”). O jornalista saudita denunciou prisões, censuras e ataques contra a imprensa no mundo árabe, defendendo uma versão mais moderna da velha mídia nacional como forma de acesso dos cidadãos às informações sobre eventos globais. Khashoggi é lembrado, agora, pela comunidade internacional como um dos exemplos mais cruéis de violação à liberdade de expressão.
Dois levantamentos do cenário internacional foram citados pelo relatório da Abert. Segundo dados divulgados pela Unesco, órgão das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura, 86 jornalistas foram assassinados, no ano passado, em todo o mundo, por motivos relacionados à profissão, sendo que os três radialistas brasileiros integram estas estatísticas. Já o levantamento da organização internacional Repórteres sem Fronteiras (RSF), que atua na defesa da liberdade de imprensa, aponta que foram 80 os jornalistas mortos, em 2018, 23% a mais do que os 65 assassinados em 2017. Embora os números sejam divergentes, eles são altos e exigem reflexão.
Cenário internacional
Cinco países concentraram o maior número de mortes: o Afeganistão registrou 15, a Síria, onze, o México, nove, o Iêmen, oito, e a Índia, seis. Desde 2006, 1.010 profissionais da imprensa foram mortos. Nove em cada dez casos nunca foram julgados. O Brasil figura como um dos países com maior impunidade para assassinatos de jornalistas. Segundo o levantamento do CPJ, os casos de 27 dos 41 jornalistas brasileiros executados, desde 1992, o que corresponde a 65,85% dos crimes, continuam sem punição.
Depois dos homicídios, o atentado tem demonstrado ser a forma mais grave de violência contra os profissionais de comunicação. Em 2018, foram registrados três casos, assim como em 2017, mas, desta vez, com número maior de vítimas: cinco radialistas. Em todos esses delitos, notam-se as mesmas características: as vítimas são profissionais de rádios locais, autoras de reportagens com denúncias de corrupção ou crítica às atividades de autoridades e políticos da região.
Depois das agressões físicas, as ameaças aos profissionais da imprensa são o tipo de violência não letal mais comum. Em 2018, foram registrados 19 casos no país com, pelo menos, 29 vítimas, além de uma ameaça de incêndio e ocupação a emissora de TV durante um ato político. O aumento de 90% em relação a 2017 aponta um crescimento da intolerância e do ódio à categoria. Sete profissionais chegaram a ser jurados de morte no período. Em quase todas as situações, a razão era o foco da reportagem: políticos ou grandes empresários, que tiveram o nome envolvido em supostas irregularidades.
Em um ano marcado pela corrida eleitoral e a maior paralisação de caminhoneiros da história, militantes partidários e motoristas de caminhão foram os principais autores dos crimes de ameaça apurados pelo relatório, enquanto os profissionais de TV foram os principais alvos, sendo que, muitas vezes, ao ligar a câmera, eles já eram hostilizados e expulsos da cobertura jornalística. Militantes partidários, políticos e manifestantes também protagonizaram a maior parte das agressões verbais contra os jornalistas no ano passado, quando o número de ofensas aumentou 300% em relação a 2017.
Intimidações e constrangimentos também impediram ou dificultaram o trabalho da imprensa. Embora nem sempre informados, tornando o cálculo pouco preciso sobre o número exato de vítimas, foram registrados 15 casos de intimidação contra pelo menos 23 jornalistas, em 2018, representando um aumento de 275% em relação aos quatro registros do ano anterior.
Os ânimos exaltados de 2018, com notícias falsas e discursos de ódio dominando os grupos de mensagens e redes sociais, o ambiente digital se tornou um campo aberto para ofensas, ameaças e ataques. Por isso, o relatório da Abert sobre violações à liberdade de expressão criou uma nova categoria, de crimes virtuais, reunindo os casos de agressões na internet. Entre os 11 ataques virtuais contabilizados, figuram registros que vão desde a publicação de dados pessoais do jornalista em represália à matéria divulgada, a xingamentos carregados de conotações machistas e discriminatórias.
Judicialização
Outro dado preocupante diz respeito ao processo de judicialização do jornalismo vivenciado pelo país nos últimos anos. Recorrer à justiça é direito de todos, indistintamente, mas, em muitos casos, é evidente a tentativa de frear o trabalho jornalístico. Somente no ano passado, foram proferidas 26 decisões envolvendo conteúdo jornalístico, número 30% maior que os 20 julgados registrados no levantamento anterior. Das 26 decisões em 2018, treze foram contrárias às empresas de comunicação ou aos jornalistas. Houve, ainda, três condenações à prisão, pena considerada pelos organismos internacionais como excessiva para os crimes de opinião, servindo como alerta à liberdade de imprensa e expressão. Em um ano eleitoral, os pedidos de direito de resposta e a retirada do ar de matérias jornalísticas foram, em parte, acolhidos nas decisões. O relatório da Abert apurou que os pedidos de indenização por danos morais contra repórteres, formulados por políticos, foram rejeitados, sendo que, em alguns casos, a decisão exaltou a importância do papel da imprensa. Entretanto, nem todas as respostas a pedidos judiciais foram nesse sentido. No Rio de Janeiro, por exemplo, sob a justificativa de que o vazamento do conteúdo dos autos poderia prejudicar a elucidação dos crimes, o juiz Gustavo Kalil proibiu a TV Globo de divulgar o conteúdo do inquérito policial que apura os assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.
Conclusões
Nota-se, portanto, que a liberdade de expressão, direito fundamental que abarca outros direitos conexos, como liberdade de comunicação, informação, acesso à informação, opinião, imprensa, mídia, divulgação e liberdade de radiodifusão, vem sofrendo duros golpes dentro e fora do país. Formalizada nos principais instrumentos normativos nacionais e internacionais, como no artigo 19, tanto da Declaração Universal dos Direitos Humanos quanto do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e no artigo 5º, inciso IX, da CF/1988, a liberdade de expressão é considerada base das democracias modernas e corolário da dignidade da pessoa humana, razão pela qual a restrição a tal direito, por si só, já representa um ato de violência que, consumado, gera ainda mais violência, conforme demonstrado pelos levantamentos dos últimos anos no cenário mundial.