‖ ‖ ‖ Deborah Cunha Teodoro ‖ ‖ ‖
Dos indignados da Espanha às tentativas de minar a esperança no Brasil, parafraseando a obra “Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet”, de Manuel Castells, as medidas que vêm sendo tomadas no país pelos três Poderes legalmente constituídos, desde junho de 2013, período em que ganharam destaque internacional os movimentos sociais brasileiros pela redução das tarifas dos transportes públicos, denotam um caráter repressivo e combativo a um direito constitucionalmente garantido: a liberdade de manifestação.
Segundo o artigo 5º, inciso XVI, da Constituição Federal de 1998, “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”. Portanto, está assegurado à população, com algumas limitações, o direito de reunião que, além de contar com previsão em dispositivo próprio da lei máxima do país, relaciona-se, intrinsecamente, ao exercício coletivo de outro direito fundamental, a liberdade de expressão do pensamento, prescrito no artigo 5º, inciso IX, da Constituição: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Decorre do texto constitucional que o direito de ir às ruas deve ser exercido de forma pacífica, sem armas, afinal, orquestrar protesto com desordem e vandalismo para chamar atenção é agir fora da lei. A manifestação deve ser realizada em locais abertos ao público, como praças e vias públicas, sendo necessário o aviso prévio às autoridades competentes para evitar coincidência com outra eventualmente marcada para o mesmo horário e espaço, além de permitir que sejam tomadas medidas, como policiamento do local e interdição de ruas e avenidas adjacentes, para preservação da ordem e segurança dos envolvidos e demais pessoas que estiverem pelos arredores. O Supremo Tribunal Federal, inclusive, já reconheceu a existência de repercussão geral da necessidade de aviso prévio à autoridade competente como pressuposto para o legítimo exercício da liberdade de reunião, o que vincula todos os tribunais a decidirem de forma idêntica nos casos de questionamento do assunto na justiça.
O direito de reunião é uma forma de exercício da cidadania e de reafirmar a democracia, demonstrando que, de fato, o poder emana do povo. Entretanto, exercer este direito está cada dia mais difícil, visto que a articulação institucional entre Legislativo, Executivo e Judiciário impôs, nos últimos cinco anos, uma série de intensas e sofisticadas restrições às manifestações populares, conforme concluiu um relatório produzido, em 2018, pelo Artigo 19, organização não-governamental de direitos humanos com atuação no Brasil desde 2007 e missão de defender e promover o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação.
O documento está dividido em sete capítulos (introdução, Legislativo, Executivo, Sistema de Justiça, linha do tempo, como as pessoas enxergam os protestos e recomendações) e indica que, desde junho de 2013, período em que tiveram notoriedade as manifestações populares contra o aumento da passagem de ônibus e marco inicial da análise, os três Poderes da União endureceram a forma de lidar com os protestos.
Os capítulos destinados ao Legislativo, Executivo e Sistema de Justiça apontam a responsabilidade de cada um deles na evolução da repressão às manifestações populares no país. Percebe-se, claramente, a tentativa constante de justificar ou legitimar a repressão policial aos movimentos sociais pela via da criminalização, real e simbólica, de quem deles participa. O objetivo é criar uma narrativa focada na conduta dos manifestantes, em detrimento do uso indiscriminado da força policial. Há, ainda, outras iniciativas de limitação à liberdade de expressão e ao direito de manifestação, a exemplo de propostas legislativas e decisões judiciais restritivas. O panorama resultante da criminalização dos protestos relaciona-se com um cenário geral de retrocesso na garantia de liberdades e direitos básicos, de diminuição das possibilidades de participação e ocupação do espaço público, e da fragilização das instituições do país.
Regular o direito de reunião, conforme constatado, representa não só um risco para a liberdade de expressão, como também para a própria democracia brasileira. A ONG de direitos humanos apurou que pelo menos 70 projetos de lei tramitam no Congresso Nacional, propondo a criação de novos crimes, o endurecimento de sanções para crimes existentes e a regulamentação do direito de protesto, categorias que se repetem nos âmbitos estadual e municipal. Tais propostas legislativas podem ser consultadas no site Projetos de Lei sobre Protestos, lançado em 2017 pelo Artigo 19, em parceria com a Rede Justiça Criminal. Em nível federal, foram aprovadas a emblemática Lei Antiterrorismo (13.260/2016) que, impulsionada pelos grandes eventos esportivos (Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016), ameaça as liberdades democráticas e os movimentos sociais, e a 13.281/2016, que, motivada pelos protestos dos caminhoneiros nas rodovias do país, em 2015, aumenta as sanções para o bloqueio de vias públicas.
Além da crescente mobilização de diferentes forças de segurança para lidar com as manifestações, as limitações ao direito de protesto também nascem dos gabinetes do Executivo na forma de interpretações jurídicas desfavoráveis ao pleno exercício desta liberdade. Exemplos disso podem ser verificados através da alegada necessidade de notificação prévia para a ocorrência de manifestações, com a indicação do trajeto a ser percorrido pelos manifestantes, bem como a reintegração de posse de prédios públicos ocupados por militantes dos movimentos sociais sem mandado judicial, que demonstram a expressiva atuação dos órgãos de cúpula dos governos para restringir o direito de protesto.
Outro importante ator para a concretização do cenário de restrição e repressão ao direito de reunião é o sistema de justiça, com destaque para órgãos do Poder Judiciário e do Ministério Público, sendo que este, além de cumprir papel essencial nos processos judiciais de criminalização do direito de manifestação, também prejudicou tal liberdade por atuação autônoma. Desde 2013, diversos casos relacionados ao exercício do direito de reunião chegaram aos gabinetes de juízes e promotores, resultando em decisões ou posicionamentos criminalizadores, com decisões para impedir o bloqueio de rodovias e restringir manifestações de determinados grupos, como sindicatos, além de sentenças de reintegrações de posse de prédios ocupados como forma legítima de protesto. O Judiciário também atua como agente criminalizador ao negar pedidos que visam à garantia da liberdade de manifestação ou à reparação de violações dela decorrentes. Já o MP tem sido omisso no que se refere ao controle externo da atividade policial, que é uma de suas missões constitucionalmente conferidas. As iniciativas concretas da sociedade civil e das Defensorias Públicas para a responsabilização do Estado ou a elaboração de protocolos de atuação das forças policiais esbarraram na inércia do Ministério Público, que, em termos gerais, não tem atuação estrutural de controle da atividade de policiamento de protestos, seja antes, durante ou depois de sua ocorrência.
Diante do levantamento das restrições impostas pelos três Poderes ao direito de reunião, estão claras as tentativas envidadas, nos últimos seis anos, para cercear um direito que, por si só, seria capaz de atender, plenamente, à função para a qual foi positivado na Constituição Federal, sendo autoaplicável, independentemente de regulamentação futura. A norma constitucional dele decorrente atende aos requisitos necessários para ser considerada de eficácia plena, já que possui aplicabilidade direta, imediata e integral, apta a produzir todos os seus efeitos, desde o momento em que é colocada em vigor no ordenamento jurídico vigente, dispensando complemento por norma integrativa infraconstitucional. O que se percebe, entretanto, são as nítidas intenções de transformar tal norma, em princípio, de eficácia plena, em uma norma constitucional de eficácia contida, embora ausente expressa disposição constitucional neste sentido, como se sua aplicabilidade pudesse ser restringida e sua abrangência reduzida pelo legislador, sendo que, neste caso, ainda sofre as limitações dos ocupantes do Executivo e do sistema de justiça.
O relatório também apresenta uma análise, em capítulo específico, que relaciona a criminalização dos protestos à forma como a população os enxerga, concluindo que a maioria dos participantes da pesquisa de opinião realizada pelo Artigo 19 passa a condenar tais atos, razão pela qual se torna papel da mídia enfatizar que este é um direito do cidadão brasileiro. Muitos entrevistados reconhecem que os critérios de eficiência de uma manifestação podem ser amplamente influenciados pela mídia, com desconfiança de grande parte deles sobre a cobertura midiática dos protestos.
Além de a criminalização ocorrer por meio das legislações restritivas ao direito de reunião, repressão nas ruas, decisões proferidas pelo Judiciário e ações do MP, bem como integrar um processo de construção simbólica, nota-se que o Estado, muitas vezes, estrutura uma narrativa em que as manifestações seriam um problema a ser contido. Ao final, o relatório do Artigo 19 apresenta um capítulo com recomendações para quem pretende exercer o direito ao protesto no Brasil.
A maior contribuição do documento está relacionada ao fato de chamar atenção para as crescentes limitações que vêm sendo impostas pelo Estado, por meio de seus poderes legalmente constituídos, ao direito de reunião, assegurado na Constituição Federal como direito fundamental, portanto, considerado cláusula pétrea, impassível de modificação por lei posterior. O relatório é crítico ao demonstrar que o grande número de projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, bem como as ações do Executivo, decisões do Judiciário e atuação do Ministério Público visam a restringir ao máximo o exercício desta liberdade intrinsecamente relacionada com a cidadania e a manutenção da democracia no país, razão pela qual seria necessário recomendar esforços para articular forças dos mais diversos setores da sociedade no sentido de deter tal tendência, promovendo a garantia da plena fruição deste direito.