‖ ‖ ‖ Agnes Sofia Guimarães ‖ ‖ ‖
Em dezembro de 2016, um homem condenado a seis anos e oito meses de prisão por roubo, desacato e desobediência à ordem de prisão teve sua pena diminuída ao ser absolvido do crime de desacato. Relator do processo, o ministro do STJ Marcelo Navarro Ribeiro Dantas encontrou amparo na decisão por meio da Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada pelo Brasil em 1992 e que garante a liberdade de expressão a todos os cidadãos brasileiros. “A criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado – personificado em seus agentes – sobre o indivíduo”, afirmou o ministro em entrevista para o Portal Nexo.
A decisão do STF ainda não representa a extinção definitiva da criminalização do desacato, mas representa um passo importante para as mobilizações contrárias ao artigo 331 do Código Penal que criminaliza o ato de “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”, e determina a pena de seis meses a dois anos de detenção ou pagamento de multa. Há anos organizações da sociedade civil apontam as irregularidades da lei em relação às convenções internacionais assinadas pelo Brasil (como a já mencionada e que garantiu a decisão de Navarro) e até mesmo em relação à própria Constituição de 1988, que determina a liberdade de expressão. Este fato é o que sustenta as duas teses apresentadas pelo dossiê “Defesa da Liberdade de Expressão: Teses jurídicas para a descriminalização do desacato”, publicado pela Artigo 19.
A publicação destaca o uso deliberado do desacato para situações que vão além da ofensa à reputação (identificada como a imagem social do indivíduo) de um funcionário público: “manifestações sociais, assim como conflitos em regiões periféricas e favelas, ambos contextos tradicionalmente marcados pela violência e o arbítrio das autoridades públicas em que a detenção por desacato se mostra como instrumento de silenciamento daqueles que ousam se opor ou denunciar uma ação irregular de agentes estatais”, destaca o dossiê. O aumento dos casos também acaba por inverter a lógica da relação entre a sociedade e os representantes do Estado: o funcionário que exerce um trabalho de interesse público deve estar sujeito a uma criticidade maior sobre o seu trabalho; no entanto, a lei do desacato e seu uso cada vez mais deliberado prejudica a própria participação popular no acompanhamento das decisões tomadas pelo poder público.
As teses
A primeira tese está diretamente relacionada ao argumento que coloca as convenções e acordos internacionais brasileiros acima das leis nacionais. O dossiê inclusive relata a recomendação feita pela Defensoria Pública do Espírito Santo para que haja a utilização sistemática, pelos defensores públicos do Estado, da tese da convencionalidade, que justificaria o desacato como uma infração às leis em proteção aos Direitos Humanos: “a incriminação por desacato, delito previsto no artigo 331 do Código Penal, afronta o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), ao impedir que o cidadão manifeste-se criticamente diante de ações e atitudes dos funcionários públicos, no exercício de sua função. Desta forma, recomenda-se aos Defensores Públicos que sustentem a absolvição do indivíduo, no bojo das ações judiciais, utilizando como instrumento o controle de convencionalidade”.
A segunda tese evoca o princípio de proporcionalidade: as sanções devem ser proporcionais à sua necessidade social e não devem restringir de forma arbitrária os direitos do condenado, o que, no entender da organização, são condições desrespeitadas pela lei do desacato, e isso poderia facilitar sua descriminalização no sistema judiciário brasileiro.
“A ideia de máxima restrição do uso do direito penal, para além dos entendimentos internacionais, possui considerável respaldo na comunidade jurídica brasileira e no estudo dessa área do direito, que tem como uma de suas bases a noção de última ratio (última razão). Trata-se, portanto, de um posicionamento internacional que possui um grande potencial de aderência no meio jurídico brasileiro, pois pode se valer de argumentos do direito penal pátrio”, conclui o dossiê.
Além da iniciativa da Artigo 19, dois projetos de lei lutam para descriminalizar o desacato: o PLS 236/201227, ao propor um novo Código Penal, retira o desacato dos crimes previstos; já o PL 602/201528 revoga diretamente o artigo 331 do Código Penal atual e também estabelece a “carteirada” como um ato de improbidade administrativa.