‖ ‖ ‖ Clara Tadayozzi (com análise de Priscila Simões) ‖ ‖ ‖
Um dos principais aspectos que permitem caracterizar as práticas de governança de um país é a transparência com que os representantes de órgãos públicos realizam sua gestão, principalmente quando se trata de problemas ou situações que influenciem de alguma maneira a vida das pessoas e o desenvolvimento da nação.
A fim de averiguar a transparência do governo brasileiro, o estudo “Transparência na Gestão dos Recursos Hídricos no Brasil”, produzido pela ONG Artigo 19 e pelo GovAmb (Grupo de Acompanhamento e Estudos em Governança Ambiental), integrado por pesquisadores da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal do ABC, apresenta uma análise dos níveis de transparência dos estados brasileiros na gestão de recursos hídricos em 2015. Uma primeira versão do estudo, com os mesmos objetivos e a mesma metodologia, foi desenvolvida em 2013, tendo em vista os períodos intensos de estiagem e de crises hídricas que marcaram também aquele ano.
Inspirando-se na iniciativa pioneira desenvolvida na Espanha e liderada pela Transparency International, a análise, lançada em abril de 2016, contou com o método do Índice de Transparência no Manejo da Água, baseado em um questionário composto por 65 perguntas que avaliam as informações disponíveis nos websites dos órgãos gestores, de acordo com seis temas: Informações sobre o Sistema Hídrico, Relações com o Público e as Partes Interessadas, Transparência nos Processos de Planejamento, Transparência na Gestão dos Recursos e Usos da Água, Transparência Econômico-Financeira e Transparência em Contratos e Licitações. Embasando-se nesses critérios, foi atribuída uma pontuação de 1 a 100 para cada Estado brasileiro pesquisado.
Após a divulgação e discussão dos resultados do estudo feito em 2013 com os órgãos gestores, a expectativa era a de que, com a repetição da análise em 2015, a disponibilização de informações aumentasse, assim como os níveis de transparência. Porém, não é exatamente isso o que se observa nas novas constatações, o que ressalta não só a fragilidade do sistema de gestão hídrica nos estados brasileiros, mas também a falta de políticas públicas que viabilizem o acesso à informação e a inclusão de atores sociais nos processos de decisão.
Resultados
No ranking final, Minas Gerais ficou em primeiro lugar no índice de transparência, com uma pontuação de 65%, valor que, embora acima da média, ainda não está próximo do ideal. O segundo lugar é ocupado por São Paulo (58%), seguido por Goiás (52%) e Ceará (44%). Roraima, Amapá e Maranhão, em contrapartida, foram os últimos nessa listagem, com as pontuações de 3%, zero e zero, respectivamente. É notável, portanto, que nenhum Estado apresentou níveis realmente satisfatórios de transparência; inclusive, alguns Estados chegaram a zerar a pontuação nessa análise.
Em comparação com a pesquisa de 2013, 16 estados apresentaram decréscimo nos valores do questionário, enquanto apenas nove apresentaram acréscimo, com destaque para Goiás, Rio Grande do Sul e Paraná, que tiveram aumentos respectivos de 27%, 16% e 13%. Os Estados que tiveram as maiores quedas nos níveis de transparência foram Sergipe, com 25%, Espírito Santo, com 19%, e Roraima e Maranhão, com decréscimo de 12%. Somente dois Estados mantiveram suas pontuações: Minas Gerais e São Paulo. Maranhão e Amapá não disponibilizaram informações sobre a gestão de recursos hídricos em 2015.
Quanto aos temas de avaliação, variações mínimas foram observadas: o tema “Relação com o Público e as Partes Interessadas” teve uma queda de 3%, “Transparência nos Processos de Planejamento” teve uma queda de 2% e “Transparência em Contratos e Licitações”, de 1%. Já o tema “Informações sobre o Sistema” aumentou 1%, “Transparência na Gestão dos Recursos e Usos da Água” permaneceu igual e “Transparência Econômico-Financeira” subiu 3%.
Interpretação dos níveis de transparência
De maneira geral, as principais informações ocultadas são as econômicas e financeiras, situação que possivelmente decorre da dependência interna de outros setores de gestão, como Energia, Saneamento e Agricultura, além dos órgãos responsáveis pela coordenação da gestão dos recursos hídricos no país. Para poder acompanhar melhor as decisões financeiras, seria preciso estender a abordagem desse estudo. Mas, segundo a análise, essa falha na transparência de informações econômicas também pode indicar que os recursos financeiros destinados à gestão hídrica nacional estejam “sendo contingenciados e/ou redirecionados para outras ações”.
Além disso, foi observado que a falta de informações sobre os instrumentos de gestão dos recursos hídricos, por vezes, decorre da inexistência desses instrumentos, da não implementação de recursos ou medidas nesse sentido, o que denota a falta de atenção dos governos a essa questão tão importante, ainda que em tempos atuais de crise política.
A Constituição prevê a disponibilização de informações referentes a gastos e finanças do Estado através da Lei Complementar 131, de 2009, e da Lei de Acesso à Informação 12.527, de 2011. Ademais, a Lei das Águas 9433, de 1997, referente à gestão dos recursos hídricos, já estabelecia os princípios de transparência para as práticas de governança nessa questão. Levando em consideração o tempo decorrido desde a implantação dessas leis, o Brasil se encontra em visível atraso quando o assunto é transparência na gestão hídrica do país.
O estudo contribui para que a população se conscientize dessa situação preocupante, propiciando a mobilização social para a exigência de direitos. Os resultados desse trabalho refletem a falta de importância que o Estado brasileiro atribui, tanto à gestão hídrica, quanto aos princípios de transparência, bem como revelam a necessidade urgente da exigência de direitos.
Análise
Priscila Flora Simões
Os resultados do estudo “Transparência na Gestão dos Recursos Hídricos no Brasil” podem ser interpretados à luz da trajetória da luta ambiental. Desde a declaração RIO 92, foi definida aos Estados a responsabilidade de divulgar e de promover a consciência quanto à gestão e consumo dos recursos hídricos de seu território, assim como a responsabilidade de divulgar informações a este respeito, como previsto no Princípio 10 (p. 155 e 156):
A melhor maneira de tratar questões ambientais e assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo deve ter acesso adequado a informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar de processos de tomada de decisões. Os Estados devem facilitar e estimular a conscientização e a participação pública, colocando a informação à disposição de todos. (…)
A partir das mudanças tecnológicas, desde os primórdios da civilização humana, mas em especial os observados e vivenciados nos últimos 100 anos, com a Revolução Industrial, que levou à da produção em massa, ocorre o consumo desenfreado de matérias-primas e de energia elétrica, que, no Brasil, em sua maior parte, é gerada em usinas hidrelétricas.
Tem-se observado, também, o desvio do curso de grandes rios como, em evidência no momento, o Rio Tapajós, ao centro e Norte do país e Rio Paraíba do Sul na região Sudeste, sobre os quais existem petições públicas, além da poluição de outros rios como o Tietê (que corta o estado de São Paulo e está em situação de poluição crítica desde a década de 1950, de acordo como Blog Sustenta Tietê, e que está em processo de limpeza há de três décadas, pelo menos). Ocorre, ainda, a destruição de rios e afluentes, como ocorreu no último ano ocasionada devido à extração “desregulamentada” de minérios pela mineradora Vale, operada pela Samarco, a qual desaguou seus dejetos no Rio Doce (que abastece várias cidades dos Estados de MG e ES), dizimando populações animais e vegetais, além do próprio rio e seus afluentes, inclusive prejudicando (por período indefinido) as populações de pescadores de Minas Gerais e caiçaras do Espírito Santo, cuja costa litorânea teve parte comprometida pela poluição. Há, também as crises hídricas já vivenciadas normalmente pelas populações do Nordeste e do Sudeste, como a do último ano, ocorrida na grande São Paulo.
Os resultados do estudo “Transparência na Gestão dos Recursos Hídricos no Brasil” são críticos, diante do proposto pelo Manual da Lei de Acesso à Informação para Estados e Municípios, o qual orienta a adoção da Lei de Acesso à Informação:
A informação sob a guarda do Estado é, via de regra, pública, devendo o acesso a ela ser restringido apenas em casos específicos. Isto significa que a informação produzida, guardada, organizada e gerenciada pelo Estado em nome da sociedade é um bem público. O acesso a essas informações – que compõem documentos, arquivos, estatísticas – constitui-se em um dos fundamentos para o aprofundamento e consolidação da democracia, ao fortalecer a capacidade dos cidadãos de participar mais efetivamente do processo de tomada de decisões que os afetam (p. 6).
As omissões apontadas pelo estudo indicam que as leis e as regras, embora existentes e orientadas, não são seguidas e aplicadas, o que acaba deixando a população, que elegeu seus gestores, sem saber o que está acontecendo, sem saber do que pode acontecer e se precaver, sem poder participar ativamente dos acontecimentos gerais antes de ocorrerem acontecimentos trágicos, sem um controle social.
O que observamos é que o cidadão, que deve ter participação ativa na gestão pública, na fiscalização, no monitoramento e no controle da administração pública, se vê cego, surdo, mudo e algumas vezes de mãos atadas, por não saber sequer o que está acontecendo. Pois, embora a democracia no Brasil já tenha quase 28 anos completos, ainda vivemos uma cultura de sigilo; mesmo em meio à grave crise política a qual o país atravessa, as informações sobre a gestão dos nossos bens mais valiosos que são os recursos hídricos e naturais são escondidas, agravando mais ainda a iminência de uma crise maior nesta área, a qual pode ocorrer a qualquer momento, já que “ninguém sabe de nada”.