2016, um ano em que precisamos falar sobre mulheres


‖ ‖ ‖ Agnes Sofia Guimarães Cruz ‖ ‖ ‖ 

 

No segundo semestre de 2015, as redes sociais foram movimentadas para o ativismo virtual praticado por feministas brasileiras. Sites como Think Olga e a revista digital AzMina criaram campanhas como #meuamigosecreto e #assedionotrabalho, em que mulheres compartilharam histórias em suas contas pessoais sobre situações de violências enfrentadas por elas, desde o assédio sofrido nas ruas e no ambiente de trabalho até agressões físicas e verbais em relacionamentos domésticos e abusivos. Essas movimentações nas redes sociais chamaram a atenção de grandes veículos, como as revistas Veja e Isto é, que colocaram na capa a Primavera Feminista, nome que rapidamente começou a ser dado por esse momento.

Ao mesmo tempo, a violência contra comunicadoras e ativistas que lutam por questões de gênero começa a ser objeto de estudo de institutos como a Unesco e a Artigo 19, entidade que, todo ano, lança um dossiê sobre a violência contra como comunicadores no país. No seu último documento, publicado em 2015, há a observação dos poucos registros de denúncia sobre atos de violência cometidos contra comunicadoras: além de questões relacionadas a medo e insegurança pelas consequências das denúncias, a violência sofrida por elas seria estrutural, acometida dentro das redações (assédio sexual, censura de reportagens e outras violências simbólicas). Para o ano de 2016, a entidade divulgará um estudo específico sobre essas outras formas de violência que, entre ativistas virtuais, encontram ecos em mensagens de ameaças e movimentos para bloquear suas páginas nas redes sociais. O discurso de ódio, nesse contexto, além de representar uma violência de gênero, causa proporções misóginas, em verdadeiros exemplos de aversão não apenas ao discurso, mas também ao corpo feminino enquanto corpo social.

No ano de 2015, as alunas Agnes Sofia Guimarães Cruz e Letícia Ferreira, orientadas pelo professor Danilo Rothberg, realizaram uma reportagem de fôlego, multimídia, sobre essa outra forma de violência contra comunicadoras. O trabalho foi financiado pelo Instituto Vladimir Herzog e sua primeira versão já encontra-se no seu site.

Do material complementar à reportagem, houve uma entrevista com o psicanalista Christian Dunker (CD). Coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP, o psicanalista Christian Dunker é conhecido por abordar temas sociais e do âmbito da violência dentro de estudos clássicos da psicanálise e da antropologia. Na entrevista, ele explica como observa o discurso de ódio contra mulheres enquanto negação a costumes contrários a normas tradicionais de sexualidade e expressão.

Como o discurso de ódio afeta a liberdade de expressão de ativistas de movimentos sociais, de um modo geral?

CD – Há muitas incidências do ódio como afeto político, mas a mais perniciosa, que infelizmente encontra-se em ascensão no Brasil de nosso tempo, é a aquela que utiliza o ódio a um grupo para fortalecer os laços internos de outro. Lacan dizia que a segregação é uma determinada incidência do real na sociedade e que corresponde à emergência de uma verdade que não pode suportar sobre si mesma. O discurso do ódio, que curiosamente emerge depois da incapacidade para lidar com uma derrota de interesses, insiste que estes “outros”, que não pensam como “nós”, não deveriam ter direito a existência, eles deveriam estar fora de nosso “condomínio”. Digo condomínio porque é assim que, para este discurso, é pensada a coisa pública: ela é uma concessão que o Estado me entregou e com ela nós fazemos o que é melhor para nós.  Os ativistas de movimentos sociais são os primeiros a sofrer com este discurso, porque é um discurso que precisa de inimigos, que precisa modificar o que dizem seus adversários em uma versão que se adapte ao ódio que já se encontra latente na relação com o outro. Feito este “espantalho”, em seguida é só mover a turba para mais um linchamento.

Como o senhor acha que o conceito de gênero, atualmente, está se reconfigurando com esses novos embates entre grupos sociais e pessoas contrárias a tais movimentos?

CD – Eu entendo a luta dos movimentos ligados a gêneros em dois planos distintos e em nenhum dos casos reduziria esta luta à reinvindicação de direitos. Entendo que ela é muito mais uma luta em torno da produção de uma experiência de reconhecimento. Uma verdadeira experiência de reconhecimento é muito mais do que tolerância, adequação e leis de conformidade.  Ela passa pelo âmbito institucional, mas é muito mais interessante e de certa forma muito mais produtiva do que isso. No primeiro plano está a articulação de práticas em tordo da identidade de grupos que sofrem discriminação histórica, persistente e generalizada. Grupos que sofrem porque estão excessivamente determinados por certas narrativas que qualificam gays, lésbicas, transgêneros como unidades patológicas, moralmente individualizadas ou moralmente repudiadas. Neste plano o discurso de ódio sempre os tomará como exemplos maiores daquilo que desestabiliza a ordem, daquilo que é o exemplo de uma contrariedade da norma. Sempre me pareceu bastante curioso, e insuficientemente estudado, o fato de que todos os regimes totalitários perseguissem de uma forma ou outra as pessoas, para as quais não se verifica a unidade heterossexual entre sexo, gênero e modalidade de gozo.

Quais mecanismos de poder ou opressão, vistos em outras situações de violência, são reproduzidos em violências discursivas?

CD – Quando vemos a ascensão de uma civilização em forma de condomínio, organizada por muros e síndicos, por regulamentos, cujo afeto fundamental é o medo e a inveja, geralmente temos esta atitude de perguntar, como a bela alma hegeliana: mas como isso foi acontecer? Isso foi acontecer porque fomos nós tornando parcialmente seletivos ao que chamamos de violência, fomos comprando uma mentalidade legalista e judicialista de violência. Então se o sujeito não comete um ato e infringe o código penal nós consideramos que ele está “livre” para fazer e falar e se portar sem restrições.  Com isso nos esquecemos que raramente a violência começa com o ato, em geral ela vem antes como discurso. Mas o discurso não nos preocupa, e quando o faz vem logo a reação de que a liberdade de expressão não pode ser tocada, ou seja, leis de novo, desta feita uma das mais constitucionais e importantes. Mas será mesmo que só temos o campo da lei para pensar a violência? Será mesmo que só podemos pensar a violência como monopólio do Estado (aliás, quem faz as leis) e como transgressão dos criminosos?

E como ocorre essa questão quando fazemos um recorte de gênero?

CD – Entendo que há uma especificidade na violência de gênero, assim como no sofrimento de gênero. Neste caso há uma articulação entre exercício de poder, que recorta transversalmente a relação entre sexo, gênero e modalidade de gozo. Isso tem a ver com nossas teorias sobre a gênese do poder, que são sincrônicas, algumas vezes, com nossas teorias sobre a gênese do sexo, enquanto referência para o desejo, do gênero, como referência para a identidade ou de nossas modalidades preferenciais de gozo. Dito isso, podemos definir a violência como uma espécie de efeito das relações inconciliáveis e também inseparáveis da equação sexo-poder. Os rituais de humilhação, o discurso do ódio, a retórica da intolerância e a gramática da indiferença são todos exemplos de como podemos fracassar em reconhecer o regime contingente de articulação entre os termos de nosso problema. Exemplos de como a negação da diferença é uma maneira de manter a diferença operando como iniquidade social, preconceito, segregação ou desigualdade. A psicanálise e boa parte da teoria social crítica percebeu que sexualidade, gênero e modalidades de gozo precisam de uma teoria do reconhecimento que vá além do contratualismo individualista baseado no sujeito racional com respeito a fins.  Esta teoria deve reservar algum lugar para o que ainda não pode ser reconhecido, para o que ainda não tem nome ou figura. Sem isso ela não conseguirá entender a violência se não como transgressão da norma e reconfiguração da norma de maneira melhor e mais forte. Esta teoria do reconhecimento nos ajudaria a entender porque a violência de gênero se apoia na reificação de certas narrativas sobre o sofrimento e como resposta a uma suposta ameaça à nossa integridade narcísica e demais justificativas discursivas que estão na gênese social da violência.