Direitos fundamentais e a interdição do clássico nazista


‖ ‖ ‖ Thaís Modesto ‖ ‖ ‖ 

 

No início de fevereiro de 2016, o juiz Alberto Salomão Junior, da 33ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, anunciou a proibição da venda, exposição e divulgação do manifesto nazista “Minha Luta” (Mein Kampf), de Adolf Hitler, em todo o estado. Os direitos autorais da autobiografia, até então controlados pelo estado alemão da Baviera, entraram em domínio público internacional em janeiro desse ano, suscitando debates éticos acerca da liberdade de expressão e da publicação de princípios nazistas – que pregam ódio e violência contra grupos sociais, étnicos e religiosos – contidos na obra.

Ajuizada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, a ação cautelar de Salomão Junior apresentou como justificativa a ideia de que exemplares de Mein Kampf, proibidos na Alemanha desde o final da Segunda Guerra Mundial, incitavam práticas de intolerância e outros sentimentos neonazistas e, por essa razão, deveriam ser impedidos de circular oficialmente. Embora tivesse o propósito de proteger a pessoa humana de qualquer manifestação capaz de fomentar discriminações, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) pode ter significado, sob outra perspectiva, a desvalorização de aspectos essenciais ao regime democrático e ao pluralismo: a livre manifestação de pensamento e acesso a informações de interesse público.

Fenômeno recorrente em decisões judiciais, a colisão de direitos fundamentais – que resultou na submissão do direito à informação e da liberdade de expressão ao combate à intolerância – também se fez presente na medida cautelar do TJ-RJ e trouxe para a discussão duas posições distintas sobre a publicação do livro. Por um lado, a ação de Salomão foi vista como uma forma de o aparelho estatal impedir os cidadãos de se informarem, de terem acesso a documentos históricos e culturais responsáveis pela formação da opinião pública. Por outro, um modo de proteger pessoas que possam vir a serem vítimas do nazismo, bem como aquelas que já foram vitimadas por práticas hostis do sistema.

De acordo com a primeira perspectiva, a proibição imposta pelo TJ-RJ configura uma espécie de censura de conteúdos de interesse público que, além de limitar o debate das ideias defendidas na obra, tem violado o princípio da democracia e contrariado os argumentos que fundamentam a liberdade de expressão, tais como a proteção da autonomia e autenticidade de convicções pessoais. Para a segunda, a edição, divulgação e comercialização do livro são consideradas crime por incitar a discriminação ou preconceito de cor, raça, etnia, religião ou procedência nacional. Ainda conforme esta visão, a decisão judicial deve ser associada à ideia de que o poder público age em função do interesse público e da dignidade humana a partir da regulação da liberdade de expressão que, apesar de ser um direito fundamental, não é um direito absoluto.

A ação cautelar em pauta parece tornar o Brasil mais restritivo do que a própria Alemanha, onde o livro voltou a circular no mês passado, setenta anos após a morte do líder nazista. Em domínio público, uma nova edição da obra, comentada e preparada pelo Instituto de História Contemporânea de Munique, chegou às livrarias do país. No Rio de Janeiro, a questão tramitou de outra maneira. Conforme o juiz do Tribunal de Justiça, as bibliotecas tiveram um período de cinco dias para apresentar suas alegações frente à decisão, que, se descumprida, prevê multa de cinco mil reais por exemplar vendido ou divulgado.

Domínio público internacional

Em janeiro de 2016, o relato autobiográfico de Hitler – uma das obras mais controversas da história – caiu em domínio público, de acordo com os termos da legislação alemã. Detidos pelo estado da Baviera desde a morte do nazista em 1945, os exemplares de “Minha Luta” agora são considerados propriedade de toda a humanidade e não necessitam mais de autorização para serem publicados.

Segundo a lei brasileira de direito autoral, o prazo de proteção da autoria de uma obra é calculado, em virtude de tratados internacionais, a partir de primeiro de janeiro do ano seguinte ao falecimento do autor. O que difere, de país para país, é o tempo de duração desse resguardo. No Brasil e na União Europeia, são 70 anos de proteção.

Após sete décadas fora das prateleiras de livrarias e com o direito autoral expirado, obras como Mein Kampf deixam de ser sustentadas pela legislação e, em tese, podem ser distribuídas e vendidas por qualquer um, desde que não haja alegações de violação de direitos em razão de discursos de ódio e racismo que elas possam promover.