Visão sombria da teia mundial


‖ ‖ ‖ Murilo Cesar Soares ‖ ‖ ‖ 

 

Resenha de “The Internet is not the answer”, de Andrew Keen

Atlantic Monthly Press, New York, 2015

 

A Internet está profundamente inserida em nossa existência e, não apenas isso, as pessoas gostam dela. Em uma pesquisa feita nos Estados Unidos, 76% dos entrevistados disseram acreditar que a Internet fez bem à sociedade. Por aqui, uma pesquisa como essa provavelmente também teria resultados muito positivos, considerando o uso intensivo que as pessoas fazem do Facebook, Wikipedia, Gmail, Amazon, Google Maps, para não falar do próprio Google, que se tornou a solução instantânea para todos os problemas de informação para o lazer, trabalho ou simples curiosidade. Além disso, a Internet trouxe uma nova e surpreendente gratuidade, dos noticiários, filmes, livros, fotos e música! O que poderia ser melhor do que tudo isso?

No entanto, para Andrew Keen, em seu último livro, The Internet is not the answer,  esse admirável mundo novo da Internet é apenas a face visível e propalada de uma rede que está engolindo o mundo em proveito de meia dúzia de mega-empresas, verdadeiros super-oligopólios, os quais, ao invés de terem criado a esperada utopia, onde todos teriam voz, estabeleceram uma centralização sem precedentes da informação e estão estrangulando gradualmente todos os meios de informação convencionais, como jornais, revistas, livrarias, editoras, produtoras de filmes e gravadoras de discos.  Ao invés de trazer uma nova economia, mais horizontal e democrática, a Internet, na verdade, realiza uma brutal concentração empresarial, inédita em termos históricos, estabelecendo uma nova economia do “tudo ou nada”, na qual, ou as empresas são vencedoras ou fracassadas, eliminando empregos maciçamente e concentrando os lucros, em mãos de pouquíssimas pessoas, os jovens barões dessa nova economia.  Uma economia com dois lados apenas: o dos bilionários e o dos mendigos.  Todas essas são palavras do autor ou citadas por ele.

“O vencedor leva tudo”

Ao contrário das utópicas previsões dos anos 90, a Internet se tornaria o eixo da criação de uma nova desigualdade, resultante do fato de que os empreendedores que fazem o primeiro lance têm vantagens enormes, baseados nas novas tecnologias de telecomunicações e computação. Keen escreve que as regras da nova economia continuam sendo as mesmas da velha economia, só que com esteroides. Para ele, quanto maior se torna a Amazon, por exemplo, menores são seus preços e mais confiáveis os serviços, de modo que a empresa se torna invulnerável à competição.  Nos Estados Unidos, a Amazon responde hoje por 65% das vendas de livros digitais, levando a uma queda pela metade do número de livrarias no país desde meados dos anos 1990, com a perda de milhares de empregos. Outras revoluções tecnológicas, no passado, praticaram a “destruição criativa”, abrindo novas oportunidades, ao mesmo tempo que eliminavam o trabalho nas atividades substituídas. Mas na Internet, os empregos são perdidos para sempre, não serão repostos em outro lugar. As perdas foram particularmente grandes na indústria de notícias dos Estados Unidos, onde os empregos de repórteres e redatores caíram de 25 mil para 17 mil entre 2003 e 2013.   Essas características peculiares à Internet de hoje, fizeram com que em dez anos, a rede deixasse de ser um brinquedo para se tornar um monopólio dominante.

Outra empresa destacada nessa economia, Google, após um começo modesto, se tornou em uma década e meia de existência, a segunda companhia mais valiosa do mundo, com um capital de 400 bilhões de dólares, embora empregue apenas 46 mil pessoas, enquanto, por comparação, a General Motors, com um valor de mercado de 55 bilhões de dólares, emprega 200 mil pessoas em suas fábricas. Google controla 65% das buscas globais, computando 3,5 bilhões de buscas por dia. Para Keen, todos trabalham de graça para o Google (assim como para o Facebook), ao produzirem os dados pessoais que tornam essas companhias tão valiosas, pois são essas informações que permitem a elas veicularem anúncios certeiros para seus clientes. Segundo o autor, foi controlando essas peculiaridades dos internautas em escala global que Google se tornou a maior e mais poderosa empresa de publicidade do mundo. 

O princípio oligopolista não se restringe ao Google, porém, mas se estende a empresas como Uber (taxis), Instagram, Twitter e outras, que se disseminam por todo mundo, empregando poucas pessoas e valendo-se do trabalho gratuito de milhões de pessoas em todo mundo.  Esse modelo de negócio global, concentrador “não é uma plataforma ideal para construir uma economia equitativa no século 21 em rede”, avalia o autor.

Facebook, além de tudo, transformou a privacidade das pessoas, de modo a torná-la rentável, vendendo-a para publicidade. Em contrapartida, as pessoas não recebem nada, enfatiza Keen, além do direito de usarem o software gratuitamente, instaurando o que ele denomina a economia do Oi, este sou eu, uma economia selfie-cêntrica.  

A falácia da gratuidade

Nos anos 1990, lembra Keen, os princípios de comprar e vender dos negócios convencionais pareciam substituídos por uma economia da gratuidade (“giveaway” economy), na qual as pessoas podiam obter online o conteúdo que quisessem, sem ter que pagar por ele.  Era a economia da dádiva, como se houvesse Natal todos os dias, a economia do Papai Noel, segundo Keen. Na realidade, a pirataria tinha se tornado uma epidemia, criando uma cleptocracia em rede, com conteúdos roubados, disfarçada de “economia do compartilhamento”. A suposta “abundância” teve um impacto econômico catastrófico na indústria da música, avalia Keen. Hoje, escreve ele, sob a aparência legal do iTunes e serviços de streaming, como o Spotify, a receita da indústria global da música caiu pela metade. O custo real, em termos de empregos e crescimento econômico, é estimado em 1,2 milhão de empregos, apenas na Europa, nos ramos de música, cinema, publicações impressas e fotografia, implicando 240 bilhões de receita perdida entre 2008 e 2015. Para Keen, os beneficiários desse roubo são criminosos que implantaram negócios como a plataforma grátis Megaupload, embora não sejam os únicos responsáveis. Para ele, “O problema é que a Internet continua sendo uma economia da dádiva, na qual os conteúdos permanecem ou sendo grátis ou tão baratos que estão destruindo o sustento de cada vez mais músicos, escritores, fotógrafos e cineastas.” Segundo o autor, muitas das companhias multibilionárias da Internet são cúmplices dessa pirataria.  As redes sociais impulsionam o crescimento da postagem de conteúdos sem autorização, especialmente fotografias e imagens em geral. Google também se beneficia desse processo, distribuindo anúncios em sites infratores ou indicando os conteúdos pirateados em seus resultados de buscas.  O próprio Google foi processado por violação de direitos no Youtube (de sua propriedade) e por infração de direitos autorais praticada pelo Google Books.

Keen agrega ironicamente que nós podemos postar nossas ideias, vídeos, músicas e fotos gratuitamente, “Mas não há dinheiro nisso para a maioria dos jovens escritores, músicos, fotógrafos, jornalistas ou filmmakers. É, na maioria dos casos, uma economia da dádiva, na qual os lucros estão sendo colhidos por um grupo ínfimo de companhias de Internet, que crescem.”

Ódio e mentiras

Ao lado da concentração econômica, Keen vê também a questão do crescimento dos abusadores, assediadores online, que está levando, por exemplo, a uma diminuição da participação das mulheres, as principais vítimas, nos blogs e chats, por se sentirem ameaçadas. Para Keen, o ódio está em toda parte na Internet, com grupos anônimos de nazistas e racistas, levando a casos trágicos de suicídios de adolescentes assediados.  Mesmo o Facebook está sendo usado por grupos radicais para espalharem suas mensagens e recrutarem adeptos para o terrorismo. O autor acredita que quando não há controle e cada um pode publicar qualquer coisa online é inevitável que haja propaganda ou simplesmente mentiras. Nem Wikipedia, uma enciclopédia redigida por voluntários, escapa desse destino, segundo ele. Um estudo feito pela American Osteopathic Association, citado no livro, concluiu que 9 em cada 10 verbetes de saúde contêm equívocos e erros. Além disso, a Wikipedia é caracterizada por uma cobertura tendenciosa, com muitos verbetes sobre atrizes pornô e poucas palavras sobre mulheres romancistas ou sobre lugares da África, por exemplo. Para Keen, sem uma curadoria responsável, a Internet degenerou em propaganda, mentiras e um excesso de informação sobre assuntos irrelevantes.

Por fim, há a questão da espionagem. Para Julian Assange, criador do site de vazamentos de informações oficiais WikiLeaks, Facebook é a “maior máquina de espionagem que o mundo já viu”. O mesmo poderia ser dito sobre Google, que se orgulha em dizer que nos conhece mais do que nós mesmos.  Na realidade, nunca antes organizações privadas ou estatais tinham processado tantos dados de tantas pessoas como essas empresas podem fazer hoje.

Para Keen, a Internet é ótima para consumidores e problemática para cidadãos, preocupados com a confiabilidade da informação, a civilidade do discurso e o respeito pela privacidade. O mundo digital, acredita, está remodelando a sociedade em alta velocidade, transformando o destino dos empregos, identidade, privacidade, prosperidade, justiça e civilidade. 

Porque chegamos a esse ponto?

The internet is not the answer parece ser uma crítica à Internet, mas na realidade é uma crítica às empresas que a privatizaram, ao constituírem a chamada Web 2.0.  Também é uma crítica à falta de regulação econômica da rede, que responde pela violação dos direitos autorais, pela superconcentração econômica em escala global, destruição de empregos e de empresas. É, igualmente, uma crítica à ausência de qualquer modalidade de accountability, ou seja, ninguém é obrigado a prestar contas sobre a qualidade das informações ou a responder por manifestações anônimas de ódio, ou pela irresponsabilidade no seu uso.

Parece, portanto, que a grande pergunta é: porque as coisas se deram dessa forma?  Será que havia outra intenção dos criadores, a qual teria sido desvirtuada pelos rumos que a Web tomou?  Ou será que, na sua criação já estava o DNA da Internet de hoje, com todos os problemas apontados por Keen? É uma questão complexa, mas para tentar respondê-la podemos começar destacando o fato de que todas as empresas oligopólicas da Internet são norte-americanas e, aliás, vêm sendo processadas por países europeus, por práticas comerciais abusivas, a começar pela Microsoft, embora sejam tratadas com simpatia pelas autoridades dos Estados Unidos. 

Também é importante levar em conta nessa investigação que o controle mundial da Internet, embora, supostamente, esteja distribuído entre os países que a formam, na realidade, está nas mãos dos Estados Unidos, onde fica a sede do órgão controlador, o ICANN. Não foi por outra razão, aliás, que, em 22 de dezembro de 2014, três dias depois da advertência do presidente Obama de que haveria uma resposta proporcional ao ataque de hackers ao site da Sony, a qual produzira um filme satirizando o ditador norte-coreano, a Internet caiu na Coreia do Norte por 24 horas.  

Não foi por acaso que a chanceler alemã Angela Merckel viajou para a França em fevereiro de 2014 para discutir com o presidente François Hollande a criação de uma Internet europeia, para que as comunicações do continente não tenham de passar pelos Estados Unidos, dando mais segurança aos cidadãos de seus países, segundo palavras de Merckel.  Essa viagem aconteceu após a revelação de que a NSA (Agência de Segurança Nacional) grampeara o celular da chanceler alemã (líder de um país aliado dos EUA), além de espionar o mundo todo pela rede.  

Essas questões talvez sugiram algumas pistas para entender porque a Internet chegou a ser o que é.