‖ ‖ ‖ Aline Camargo e Lucilene Dantas ‖ ‖ ‖
A necessidade social da informação é, hoje, suprida em grande parte pelo jornalismo. É a partir dele que as informações chegam, de forma mediada e não direta aos cidadãos. No contexto atual, o jornalismo tradicional com o conceito base da objetividade convive com a crescente mídia alternativa e contra hegemônica: a mídia radical. Esta análise[1] pretende verificar de que maneira a Folha de S. Paulo[2], considerada veículo tradicional, e a revista Carta Capital[3], tida como veículo radical, cobriram as manifestações do Movimento Passe Livre de 10 a 14 de junho e de que maneira as características das duas mídias se confirmam, assemelham ou diferem.
O Movimento Passe Livre (MPL) defende a adoção da tarifa zero para transporte coletivo. Foi fundado em 2005 em Porto Alegre e destacou-se ao participar da organização dos protestos contra o aumento da tarifa em São Paulo em junho de 2013.
Características da mídia tradicional
O conceito base do jornalismo tradicional está baseado na objetividade. “A objetividade no jornalismo não é a negação da subjetividade, mas uma série de procedimentos que os membros da comunidade interpretativa utilizam para assegurar uma credibilidade como parte não-interessada e se protegerem contra eventuais críticas ao seu trabalho”, sustenta Traquina (2004, p. 139).
No percurso histórico de afirmação de um jornalismo “sem interpretações, adjetivações e valorações”, ressalta Barros Filho (1995, p. 24), estabeleceram-se valores como verdade, equilíbrio, valor da informação, legibilidade (clareza), checabilidade, imparcialidade e pluralismo. Tais componentes acabavam por medir o grau de objetividade de determinado produto, configurando também uma estética da objetividade.
Um dos primeiros modelos de estudo da mídia foi dado pela chamada teoria hipodérmica, que, marcada pela novidade do fenômeno dos mass media no período entreguerrase de sua ligação com as experiências totalitárias, fornecia uma apreciação global, indiferente à diversidade de meios e da própria sociedade.
Ao levar em consideração um público único, a ideia de sociedade de massa surgiu como “consequência da industrialização progressiva, da revolução dos transportes e do comércio, da difusão de valores abstratos de igualdade e de liberdade”, explica Wolf (1987, p. 19). Nesta sociedade, “a massa é constituída por um conjunto homogéneo de indivíduos que, enquanto seus membros, são essencialmente iguais, indiferenciáveis, mesmo que provenham de ambientes diferentes, heterogêneos, e de todos os grupos sociais” (p. 20).
Os indivíduos que compõem a sociedade de massa são desconhecidos e estão isolados. Eles acabam por viver modelos e expectativas que não são os seus, como público indefeso e passivo. A reação da audiência frente àquilo que lhe é oferecido pode ser observado como forma de comportamento direto, que se baseia na relação entre estímulo e resposta, dadas a instantaneidade e inevitabilidade de seus efeitos.
Características da mídia radical
De acordo com Downing (2001, p. 39), a “cultura popular concentra-se na matriz da mídia radical alternativa, que é relativamente independente da pauta dos poderes constituídos e, às vezes, se opõe a um ou mais elementos dessa pauta”. A mídia radical pode estar presente em diversas atividades, “desde o teatro de rua e os murais, até a dança e a música” (p. 39).
Para Downing, entre as mudanças entre a mídia tradicional e a radical está a redefinição de papeis e conceitos: “as audiências são redefinidas como usuários da mídia em vez de consumidores, como ativas em vez de acríticas, como variadas em vez de homogêneas” (p. 40). Neste novo conceito de receptor, ou audiência, “a linha que separa os usuários de mídia ativos dos produtores de mídia radical alternativa torna-se muito mais indistinta” (Downing, 2001, p. 39).
A mídia radical também tem como característica o posicionamento contrário ao status quo, uma visão que pode até mesmo ser vista como idealizada: “se a mídia radical alternativa sugere que a estrutura econômica ou política necessita urgentemente de certas mudanças, embora seja bem claro que, no presente, tais mudanças são inimagináveis, então o papel dessa mídia é manter viva a visão de como as coisas poderiam ser, até um momento na história em que sejam de fato exequíveis” (Downing, 2001, p. 41).
Assim, a mídia radical pode ser vista como uma força contra hegemônica: “como forma de categorizar as tentativas de contestar as estruturas ideológicas dominantes e suplantá-las com uma visão radical alternativa” (p. 48). O autor completa que no contexto de um Estado capitalista o papel da mídia radical “pode ser visto como o de tentar quebrar o silêncio, refutar as mentiras e fornecer verdades”. Essa atitude é chamado por Downing como modelo da contra-informação, (2001, p. 49).
Mas é preciso ir além de informar: “a mídia radical tem a missão não apenas de fornecer ao público os fatos que lhe são negados, mas também de pesquisar novas formas de desenvolver uma perspectiva de questionamento do processo hegemônico e fortalecer o sentimento de confiança do público em seu poder de engendrar mudanças construtivas” (p. 50).
Downing (2001, p. 55) também aponta a relação entre a mídia radical e os movimentos sociais, que segundo ele estabelecem uma relação de interdependência: “os movimentos sociais constituem uma das expressões mais dinâmicas de resistência (…) são de enorme importância para a compreensão da mídia radical e das culturas de oposição”.
As análises realizadas consideraram:
1) Atores citados
Carta Capital | Atores citados |
Dia 10 | Promotor de justiça, blogueiro, movimento passe livre |
Dia 11 | Movimento passe livre, manifestantes, polícia |
Dia 12 | Ministério Público, movimento passe livre, representantes do governo estadual e municipal, polícia militar, Companhia do Metropolitano de São Paulo. |
Dia 13 | Geraldo Alckmin, Ministério Público, Movimento Passe Livre. |
Dia 14 | Movimento, Polícia, jornalista Piero Locatelli |
Folha de SP | Atores citados |
Dia 10 | Prefeito, Goverandor, Polícia, Manifestantes, População, Estudantes, alas radicais, presidente do Brasil, trabalhador. |
Dia 11 | Prefeito e vice-prefeita, Polícia, Manifestantes, Governador e vice-governador, Guarda Civil, presidente da câmara. |
Dia 12 | Manifestantes, polícia militar, guarda civil, rapaz agredido |
Dia 13 | Governador, prefeito, tropa de choque, manifestantes, moradores, estudantes, policial agredido. |
Dia 14 | Polícia Militar, Manifestantes, Jornalistas, Tropa de choque, Motoristas, prefeito, governador, secretário de segurança. |
2) Fontes ouvidas
Folha de SP | Fontes ouvidas |
Dia 10 | Prefeito |
Dia 11 | Prefeito |
Dia 12 | Polícia |
Dia 13 | Governador e policial agredido |
Dia 14 | Movimento Passe Livre, Governador, Prefeito, Sec. de Segurança. |
3) Título
Carta Capital | Sujeito | Verbo |
Dia 10 | Promotor de justiça | Diz |
Dia 11 | Terceiro ato | Acontece |
Dia 12 | MP | Vai propor (suspensão do aumento) |
Dia 13 | Alckmin | Afirma (…. é vandalismo) |
Dia 14 | Repórter da Carta Capital | É (detido) |
Folha de SP | Sujeito | Verbo |
Dia 10 | Haddad | Defende |
Dia 11 | Haddad | Atribui |
Dia 12 | Manifestantes | Queimam e depedram |
Dia 13 | PM | Ser (mais dura) |
Dia 14 | PM | Reage (com violência) |
4) Adjetivos e/ou sinônimos
Adjetivos/ Carta Capital | Polícia | Militantes | Políticos |
Dia 10 | – | Movimento | – |
Dia 11 | – | Movimento | – |
Dia 12 | – | Movimento | – |
Dia 13 | – | Movimento | – |
Dia 14 | – | – | – |
Adjetivos/ Folha SP | Polícia | Militantes | Políticos |
Dia 10 | – | grupo | – |
Dia 11 | – | manifestantes | – |
Dia 12 | – | manifestantes | – |
Dia 13 | – | Baderneiros; vândalos | – |
Dia 14 | – | manifestantes | – |
Considerações
A partir das análises realizadas, observou-se que os dois veículos pautaram as manifestações durante os cinco dias analisados. A Carta Capital destaca inicialmente a polêmica declaração do promotor de justiça sobre a forma de tratar os manifestantes, enquanto a Folha de S. Paulo destaca o apoio do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, à atuação da PM para contê-los.
Verifica-se que os dois veículos citaram os mesmos atores. O jornal Folha de São Paulo foi mudando seu foco dos representantes do governo estadual e municipal para a atuação da polícia na contenção do Movimento, enquanto que a Carta Capital manteve seu foco sobre os mesmos atores, alterando apenas no último dia, quando destacou a ação da tropa de choque da polícia.
A Carta Capital não citou atores como fontes durante os cinco dias, utilizando apenas as redes sociais. A Folha de S. Paulo ouviu em seus três primeiros dias os representantes de governo municipal e estadual e polícia, trazendo falas de representantes do Movimento Passe Livre apenas no último dia analisado (14/06/2013).
Os sujeitos dos títulos foram se alternando nos dois veículos. No dia 14, que culminou na ação da polícia que atingiu jornalistas, a Carta Capital deu ênfase à vítima de agressão, e a Folha de S. Paulo enfatizou os agressores.
Os veículos utilizaram poucos adjetivos para referir-se a militantes, polícia e políticos. Apenas o jornal Folha de S. Paulo reproduziu as palavras utilizadas também por representante do governo – “baderneiros” “vândalos”, referindo-se aos manifestantes.
Observamos que a Folha de S. Paulo utilizou mais fontes em suas reportagens que a Carta Capital, que apresentou como fontes das matérias fragmentos de declarações publicados em redes sociais, não utilizando fontes oficiais, o que pode prejudicar a credibilidade de sua publicação.
A partir das análises realizadas é possível questionar os conceitos de mídia tradicional e radical, bem como os pontos que as assemelham e as diferem. A mídia radical aparece como alternativa crítica à mídia tradicional e hegemônica, mas é preciso verificar quais pontos dela ainda podem ser melhorados a fim de obter uma cobertura equilibrada dos fatos, objetivo máximo do jornalismo de qualidade.
Links para as matérias analisadas:
Carta Capital
14 http://www.cartacapital.com.br/tv/sociedade/reporter-de-cartacapital-e-detido-por-portar-vinagre
Folha de S. Paulo
10 http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/10/15
11 http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/11/15
12 http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/12/2
13 http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/13/15
14 http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/14/2
Referências
BARROS FILHO, C. Ética na comunicação. São Paulo: Summus, 2003.
DOWNING, J. D. H. Mídia radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. São Paulo: Senac, 2001.
OCDE. Promise and problems of e-democracy: challenges of online citizen engagement. Executive Summary. Paris, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, 2003.
SILVA, S. P. Graus de participação democrática no uso da Internet pelos governos das capitais brasileiras. Opinião Pública, v. 11, n. 2, p. 450 ‐468, 2005.
TRAQUINA, N. Teorias do jornalismo: por que as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 2004.
WOLF, M. Teorias da Comunicação. Lisboa: Presença, 1987.
[1] Esta análise integra um artigo aceito para apresentação na Secom – Semana de Comunicação, na Unesp Bauru.
[2] Fundado em 1921 o jornal diário tem, segundo sua página na internet, mais de 2 milhões de leitores assíduos. É o segundo jornal de maior circulação no país e durante o período das manifestações suas reportagens foram as que mais vezes foram compartilhadas no Facebook. Dos leitores da Folha, 80% tem acesso à internet e 75% fazem parte da classe A ou B.
[3] Revista semanal, com tiragem de 65 mil exemplares e audiência de 230 mil leitores. O veículo utiliza a internet desde 2004.