Autorregulação da mídia, mas com muitas reservas


‖ ‖ ‖ Deborah Cunha Teodoro ‖ ‖ ‖ 

 

Há mais de cinco anos, a reformulação dos dispositivos regulatórios da radiodifusão brasileira vem sendo discutida no país. Algumas medidas foram tomadas, com a articulação do governo e o engajamento das diversas esferas interessadas no assunto, mas o resultado, em termos legislativos, ainda não foi alcançado.

Com o objetivo de formular políticas públicas para o setor, o governo federal convocou a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada no final de 2009, em Brasília-DF. O evento promoveu amplo debate com representantes governamentais, das empresas de comunicação e da sociedade civil, ressaltando-se que estes grupos, frequentemente, apresentam perspectivas conflitantes. Não quiseram participar da Confecom a Abert (Associação Brasileira de Rádio e Televisão), liderada pela Rede Globo, e a ANJ (Associação Nacional dos Jornais). As teses sobre a organização política e econômica dos meios de comunicação brasileiros que apresentavam diretrizes imprescindíveis para qualquer modificação estrutural no setor foram aprovadas no evento, mas não chegaram a ser votadas no Congresso Nacional, o que implica dizer que não surtiram efeitos legais ou normativos no país.

Embora “Comunicação: meios para a construção de direitos e de cidadania na era digital” tenha sido o tema da Confecom, as discussões sobre a era digital, em que as inovações tecnológicas proporcionam a convergência das mídias, vieram a lume no Seminário Internacional das Comunicações Eletrônicas e Convergência de Mídias, realizado em 2010. O evento apresentou as experiências de regulação, os avanços e as limitações dos processos regulatórios de países democráticos que lidam com essas transformações, como Estados Unidos, Reino Unido, França, Espanha, Portugal e Argentina, para debater os impactos da tecnologia nas comunicações eletrônicas (telecomunicações e radiodifusão) brasileiras. Também foram discutidos estudos desenvolvidos pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) e OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

Ainda em 2010, foi criada uma Comissão Interministerial para elaborar um projeto de reformulação do marco regulatório das comunicações. O trabalho foi feito e o projeto entregue pelo ex-ministro das Comunicações Franklin Martins aos representantes do governo Dilma Rousseff, mas, por enquanto, não se tem notícia de novas providências a respeito.

Apesar de ser recente, o movimento pela democratização da mídia ratifica a necessidade do estabelecimento de mecanismos democráticos de formulação, monitoramento e acompanhamento das políticas públicas de comunicação, já que uma maneira eficiente de efetivar conquistas ou garantir os direitos adquiridos é através da organização social de base e da união de forças em projetos que têm no povo seu protagonista. Além de serem fundamentais para a democracia brasileira, as comunicações representam um setor estratégico para o desenvolvimento social.

Entretanto, o que se vê, atualmente, no setor comunicacional não é bem isso. Alguns conglomerados de mídia promoveram sua própria regulação, ao lançar códigos de conduta editorial, como guias e manuais profissionais a serem seguidos por suas empresas. A ANJ (Associação Nacional dos Jornais), que não quis participar da Confecom, em 2009, lançou, em 2011, um Programa Permanente de Autorregulamentação, com o objetivo de ampliar, entre os associados, as iniciativas que permitam aos leitores acessar, demandar e obter respostas dos responsáveis pelos jornais. Desta forma, procurou expressar preocupação em garantir a credibilidade do jornalismo, através da qualidade da informação veiculada ao público. Ainda que este seja um exemplo da mídia impressa, não demorou para as concessionárias de rádio e televisão se enveredarem pelo mesmo caminho.

Também em 2011, as Organizações Globo, que respondem pelo maior conglomerado de mídia latino-americano e pela principal rede de TV brasileira, lançaram seu Guia de Princípios Editoriais. Segundo o documento, a intenção é nortear sua produção jornalística, pautada na isenção, correção e agilidade, além de estipular a conduta a ser seguida pelos profissionais no processo de apuração da notícia, ao lidar com as fontes, os usuários e até mesmo os colegas de profissão. As ideias ali compromissadas são condizentes com o que se espera da atuação de um meio de comunicação sensível às necessidades do público pelo acesso à informação de qualidade, mas, isso não significa que sejam seguidas na prática, pois não há como averiguar ou punir possíveis desvios.

Assim como as Organizações Globo, o Grupo RBS lançou, em 2011, o Guia de Ética e Autorregulamentação Jornalística, inspirado em orientações da Unesco, no Programa de Autorregulamentação Permanente da ANJ e nos códigos nacionais e internacionais. O documento deixa claro qual é a linha editorial seguida pela empresa e define os critérios éticos que regem a produção jornalística, conduta profissional, pluralidade de opinião e os procedimentos a serem utilizados com os partidos políticos e em época de campanhas eleitorais. O guia embasa seu jornalismo na busca da verdade, visando a oferecer ao público informação independente, pautada na liberdade de expressão, identificada pelo Grupo RBS como esteio da democracia.

Com a mesma preocupação estruturada na busca pela verdade, a EBC (Empresa Brasil de Comunicação) lançou seu código de conduta em 2013, sob o título Somente a verdade – Manual de Jornalismo da EBC. O documento apresenta seus princípios, valores, objetivos e diretrizes, além dos referenciais, parâmetros e procedimentos que devem ser seguidos pelos profissionais na prática jornalística, com orientações para temas e situações específicas, estratégias para a qualidade de suas produções e conduta ética e transparência na relação com o público.

Estes guias e manuais compartilham os princípios de veracidade, exatidão, objetividade, imparcialidade e justiça, que refletem fundamentos teóricos do jornalismo, como direito à verdade, a críticas e comentários justos; informações objetivas, baseadas em fatos; obtenção de informações por métodos lícitos; correção de erros; e sigilo e respeito às fontes. Contudo, não há garantia de que os códigos de conduta editorial provenientes da autorregulação da mídia serão respeitados pelos profissionais a que são destinados, já que a violação a suas regras não incorre em grandes ou definitivas sanções. Por exemplo, a expulsão de um jornalista que, conscientemente, tenha infringido o código de uma instituição ou associação não o proíbe de continuar exercendo a profissão. Além disso, estes profissionais não costumam definir as prioridades editoriais dos meios de comunicação aos quais estão subordinados, incumbindo estas àqueles que ocupam o alto escalão, o que demonstra a fragilidade de tais dispositivos e ratifica a dificuldade, corroborada por raízes históricas, de discutir as comunicações no país.

Portanto, diante da dificuldade de se estabelecer uma nova regulamentação para o setor comunicacional brasileiro, algumas prestadoras do serviço público de radiodifusão promovem a autorregulação, numa iniciativa que alguns especialistas da área têm encarado com ressalvas, acreditando se tratar mais de uma estratégia de relações públicas do que de um real engajamento com a responsabilidade em veicular informação qualificada. Enquanto isso, sedimentam-se, cada vez mais, os padrões estético-tecnológicos existentes na mídia comercial, dificultando a busca de outros caminhos, entre os quais, aquele antenado com a vocação do jornalismo para defender os interesses coletivos, fortalecendo o poder decisório em sociedade.