As cidades e a desigualdade segundo o Le Monde Diplomatique


Taís Capelini


O Brasil chegou ao final do século XX como um país majoritariamente urbano. Segundo dados do IBGE, em 2000, a população urbana ultrapassou dois terços da população total, e atingiu a marca dos 138 milhões de pessoas. Essa tendência de crescimento vem se reafirmando, e hoje 84% dos brasileiros vivem em cidades. Essa nova configuração das cidades brasileiras, evidentemente, traz consigo inúmeras conseqüências.

Na edição de abril de 2011 do jornal Le Monde Diplomatique há dois artigos que abordam problemáticas urbanas do país. Luiz Cesar Ribeiro (professor-titular do IPPUR-UFRJ e coordenador do INCT Observatório das Metrópoles) e Orlando Santos Junior (professor-adjunto do IPPUR-UFRJ e membro da coordenação do INCT Observatório das Metrópoles) iniciam o artigo intitulado “Desafios da questão urbana” chamando atenção do leitor para temas como a livre mercantilização e a política de tolerância com as formas de apropriação do solo urbano.

Os autores destacam que os problemas das cidades brasileiras precisam ser encarados como um ponto fundamental da nossa questão nacional. Segundo eles, “os mecanismos que submetem a questão nacional à lógica do crescimento mercantil são aqueles apontados por Celso Furtado como responsáveis pela manutenção do Brasil como uma nação inacabada”. Afirmam que nossas cidades também são “inacabadas”, visto que “são incapazes de mediar conflitos e integrar, mesmo que parcialmente, as distintas classes e grupos sociais”.

Para os pesquisadores, o momento atual é de transformação e, por isso, faz-se necessário atualizar os debates sobre os problemas urbanos do Brasil, com vistas a definir novos modelos de planejamento e gestão das cidades. De acordo com eles, a reconfiguração da acumulação urbana e sua inserção nos circuitos financeiros globalizados abrem um novo ciclo de mercantilização do território. A organização e o funcionamento da administração urbana tornam-se, por sua vez, reféns de quatro lógicas políticas particularistas: clientelismo, patrimonialismo, corporavitivismo e empresariamento urbano.

O resultado dessas práticas é a consolidação de um padrão de governança urbana singular, pelo qual o planejamento, regulação e ações são substituídas por padrões de gestão excludentes, que acarretam a crescente fragilização dos órgãos da administração pública e dos canais institucionais de participação.

Analisando os planos diretores elaborados após o estabelecimento do Estatuto das Cidades, os autores constatam que esses planos estabelecem importantes diretrizes no que toca as políticas de habitação, saneamento, mobilidade, entre outras. Entretanto, percebem que não há mecanismos destinados a transformar os objetivos propostos em realidade.

Os autores finalizam o artigo com uma reflexão sobre o  contexto de mercantilização da cidade, e sugerem que para enfrentar esse novo contexto “é necessário, antes de tudo, atualizar o ideário do direito à cidade como parte de uma nova utopia dialética em construção, emancipatória e pós-capitalista, materializada em um novo projeto de cidades e de organização da vida social, que precisa se expressar também na atualização do programa e da agenda da reforma urbana e na promoção de práticas e políticas socioterritoriais de afirmação do direito à cidade”.

O artigo “A produção social de vulnerabilidade urbana”, de autoria de Kazuo Nakano (arquiteto urbanista do Instituto Pólis e doutorando em Demografia na Unicamp), dialoga com o artigo de Luiz Cesar Ribeiro e Orlando Santos Junior. Nakano também destaca a falta de processos eficientes de planejamento e regulação urbana que promovam formas justas, sustentáveis e democráticas de ocupação e apropriação do território.

O autor lembra que, nos últimos anos, algumas melhorias foram significativas nas condições de vida urbana, mas permaneceram insuficientes em diversos aspectos. Ressalta que 80% da população brasileira vivem em ambientes impróprios, suscetíveis a diversos tipos de contaminação, em moradias estabelecidas em áreas de risco, com espaços públicos e equipamentos comunitários inexistentes ou deficitários. Segundo Nakano, é preciso considerar a “persistência de problemas estruturais que geram precariedades, desigualdades e vulnerabilidades nas cidades brasileiras”.

Esses problemas, segundo o pesquisador, limitam os avanços dessas melhorias e, futuramente, podem provocar retrocessos. São problemas provenientes de um processo histórico de omissões do poder público ”tanto em relação às ações regulatórias e fiscalizatórias quanto à provisão de solos urbanizados adequadamente”, e diretamente vinculados às “formas desiguais de ocupação do espaço urbano por parte de agentes do mercado fundiário e imobiliário que operam em âmbitos formais e informais”.

Os investimentos públicos em infraestrutura e serviços se associam a frações desses mercados, distribuindo-se de modo desigual nos espaços urbanos. São beneficiados aqueles que possuem poder aquisitivo para pagar para acessar os melhores espaços, em detrimento das áreas produzidas irregularmente e ocupadas pelos mais pobres. A estes últimos, cabe pagar o pouco que possuem para viver nas periferias, em áreas urbanizadas inadequadamente, sendo obrigados a aceitar os riscos e vulnerabilidades que protagonizam os noticiários, que se repetem ano após ano.

Ademais, Nakano destaca que alguns espaços urbanos produzidos irregularmente tornam-se alvos da especulação imobiliária destinados às classes mais abastadas. Passam, então, a receber investimentos públicos e privados, e os moradores de baixa renda são obrigados a sair desses espaços para viver em bairros mais baratos. Processo que alguns autores chamam de “gentrificação”.

O autor finaliza o texto chamando atenção para o momento crítico que estamos vivenciando: “a implementação do Estatuto da Cidade está praticamente paralisada; a construção do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social caminha a passos de tartaruga; o marco legal do saneamento ambiental ainda está para ser colocado em prática; e a Política Nacional de Mobilidade não saiu do papel”. Faz um apelo para que haja uma reorientação do Ministério das Cidades para a concretização da reforma urbana no país. Complementa afirmando que “é urgente arrancar o controle dos processos de produção dos espaços urbanos das coalizões políticas conservadoras, clientelistas e patrimonialistas, que privilegiam somente o valor de troca do solo das cidades em detrimento dos espaços para o exercício dos direitos e vida social. Diante de tudo isso, é mais que urgente articular redes e coalizões em defesa do Direito à Cidade”.

Fazendo um balanço entre os dois artigos, vale lembrar que ganha cada vez mais força a idéia de que será por meio das próprias cidades que teremos a possibilidade de propor mecanismos de um novo tipo de desenvolvimento econômico, humano e territorial. Baseados na negação da segregação social, na promoção da função social da cidade e da propriedade, na democratização nas relações sociais e na sustentabilidade do uso e proteção dos recursos naturais. O planejamento e a gestão pública são pontos nevrálgicos para a efetivação desses novos modelos. Os problemas são históricos e conhecemos as graves conseqüências que eles acarretam. Não há mais tempo para protelar decisões importantes, as condições de vida de milhões de brasileiros serão fruto dessas ações.