Mídia, democracia e política


Jefferson O. Goulart


É ponto pacífico que imprensa livre, opinião pública informada e povo soberano são requisitos para qualquer democracia. Entre o enunciado teórico e a realidade, porém, há uma enorme distância que separa o dever ser dos fatos concretos. Afora o previsível acirramento político, não é por outro motivo que o debate sobre o papel da mídia polarizou boa parte da campanha eleitoral de 2010*.

Professar valores e fazer juras a princípios ajuda pouco, mesmo porque as palavras podem ser usadas de diferentes maneiras para propósitos nem sempre republicanos e autenticamente liberais. Basta lembrar a célebre expressão tornada lema de ação política do udenismo: “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. De autoria controversa, a frase serviu de inspiração golpista em vários momentos, muitos traumáticos como o suicídio de Vargas e o golpe de 1964.

Pergunta preliminar: é possível que a imprensa se mantenha autônoma em relação às instituições políticas? Ou seja, é possível ser independente do poder? Possível é, mas nem sempre este princípio é preservado. No Brasil, já em meados do século XX, o problema se colocou de maneira cristalina quando a imprensa jogou papel determinante na afirmação do ideário “liberal” das elites políticas e econômicas, refletindo as aspirações de certos grupos sociais e assumindo-se como parte do processo político.

As lutas abolicionista, republicana e pela afirmação de uma identidade nacional (e de um Estado nacional) são grandes exemplos nos quais a imprensa da época foi indisfarçavelmente partisan, seja conservadora, seja progressista. Não é casual que os ideólogos e dirigentes dos partidos políticos tivessem nas páginas dos jornais um canal privilegiado de interlocução e de difusão de idéias. Os jornais tinham posição e preferências, como ainda têm nos dias atuais estes e outros meios de comunicação.

Não há neutralidade possível, esta é a conclusão banal quando tratamos de informação, opinião pública e política, sem falar na dimensão comercial deste negócio e da conhecida dependência privada do público. Para um debate de bom nível, é preciso reconhecer esta verdade inelutável, problematizando a difícil equação entre a adoção de uma linha editorial qualquer e uma cobertura jornalística minimamente idônea – problema ainda muito longe de ser resolvido.

A sociedade contemporânea se tornou mais intricada, e com isso os processos de formação da opinião pública também se complexificaram, a ponto de os cidadãos não se deixarem mais se induzirem facilmente até em razão da constituição de novas redes comunicacionais nas quais se produzem e circulam informações.

Nesse sentido, é um grave equívoco reduzir a vida pública e a política a dimensões estritamente moralizantes sob a desculpa de que assim teríamos uma disputa pelo poder supostamente mais ética. Sobram exemplos em que o desdobramento mais “natural” seria demonizar indivíduos e instituições estranhos aos padrões preconizados. A esta conduta se soma a tendência midiática à espetacularização da informação.

Como adverte o professor Milton Meira do Nascimento [FFLCH/USP], “quanto está em jogo o recurso a uma verdade absoluta para a salvação da vida política, isto implica a busca de preceitos morais universais para comandar a ação. E quando a moral universal invade a política, ou é o fim da moral ou o fim da política”.

Dito de outro modo, a mídia não só não tem autoridade para falar em nome da soberania popular como pode confundir seu direito de integrá-la com uma tomada de posição em que suas convicções e interesses se confundem com seu papel informativo. Ou seja, informar criticamente é uma atribuição trivial da mídia, mas a manipulação da informação e a organização de campanhas favoráveis ou contrárias a candidatos e a partidos extrapolam – e muito – suas prerrogativas.

Aqui convém lembrar a notável observação do pesquisador Fernando Lattman-Weltman [CPDOC/FGV]: “quem deu aos jornalistas a atribuição de julgar, absolver e condenar, sejam os eventuais pecados dos homens públicos, sejam as propensões do eleitorado num Estado de Direito e numa democracia moderna digna desse nome?”. Há que se lembrar, pois, de alguns detalhes da atribuição de responsabilidades em democracias: “quem julga, em nosso regime, é a Justiça. E quem elege é o povo”.

A mídia não pode se comportar como partido político, que advoga determinado programa e disputa o poder, porque isto não só a desqualifica como frauda a democracia. Este é o ponto que não pode ser ignorado.

A mídia cultiva o hábito da crítica, para o bem e para o mal, mas tem enorme dificuldade – uma autêntica fobia patológica – para admitir a crítica, como se estivesse imune e acima da avaliação dos mortais, mesmo que ninguém lhe tenha outorgado o privilégio de pairar sobre a sociedade. A despeito da semelhança fonética, liberdade de imprensa é diferente de liberdade de empresa.

A democracia precisa mais e mais de liberdade de informação, mas dispensa a indisfarçável mídia partidarizada. Essa agenda ainda está aberta, e certamente integra o escopo do debate inconcluso sobre o marco regulatório da Comunicação no Brasil.

(*) Versão modificada e ampliada de artigo originalmente publicado no Jornal de Piracicaba, p. A3, em 26/09/2010.


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