Rosa Malena Pignatari
Maria Antonia Vieira Soares
A educação, tema permanente renovado pelos debates eleitorais recentes, encerra desafios nem sempre discutidos adequadamente. Daí a relevância de revisitar referências importantes como o livro “Os saberes necessários à educação do futuro”, de Edgar Morin (Editora Cortez e Unesco, 2002).
O título do livro evoca os eixos que ancoram reflexões indispensáveis a todos que se preocupam com o futuro da educação: 1) As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão, 2) Os princípios do conhecimento pertinente; 3) Ensinar a condição humana; 4) Ensinar a identidade terrena; 5) Enfrentar as incertezas, 6) Ensinar a compreensão; e 7) A ética do gênero humano.
Para Morin, todo conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão, posto que não se constitui de um espelho das coisas ou do mundo externo e sim da tradução de uma dada realidade. As percepções são a um só tempo tradições e reconstruções cerebrais com base em estímulos ou sinais captados e codificados pelos sentidos. Ao erro da percepção, oriundo de um dos nossos sentidos mais confiáveis que é a visão, acrescenta-se o erro intelectual. Ou seja, o conhecimento sob forma de teoria, de idéia é fruto de uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento e, por conseguinte, está sujeito ao erro.
Este conhecimento que perpassa a questão da tradução/reconstrução também comporta a interpretação, o que introduz o erro na subjetividade do conhecedor, de sua visão de mundo e de seus princípios de conhecimento. As projeções de nossos desejos e medos trazidos por nossas emoções multiplicam os riscos do erro. Todavia, não se pensa recalcar a afetividade para eliminar o risco do erro, até porque, segundo Morin, é preciso dizer que, no mundo humano, o desenvolvimento da inteligência é inseparável do mundo da afetividade. O autor alerta que a afetividade pode asfixiar o conhecimento, mas também pode fortalecê-lo. Há estreita relação entre inteligência e afetividade: a faculdade de raciocinar pode ser diminuída ou mesmo destruída pelo déficit de emoção; o enfraquecimento da capacidade de reagir emocionalmente pode estar na raiz dos comportamentos irracionais. Portanto, não há um eixo dominante da razão sobre emoção, mas um eixo intelecto-afeto, posto que, de certa maneira, a capacidade de emoções é indispensável ao estabelecimento de comportamentos racionais.
Nesse contexto, cabe à educação se dedicar a identificar a origem de erros, ilusões e cegueiras. Isso porque nenhuma teoria científica está imune ao erro, e os paradigmas que controlam a ciência podem desenvolver ilusões.
Racionalidade e erro
Edgar Morin aponta a racionalidade como o melhor mecanismo de proteção contra o erro. Mas a racionalidade apontada pelo autor é aquela que se mantém aberta ao que a contesta exatamente para evitar que se feche em doutrina e se converta em racionalização. Enquanto a racionalidade está em processo constante de revisão, a racionalização se julga um sistema lógico perfeito, é fechada, nega-se a contestação de argumentos e à verificação empírica. Já a racionalidade verdadeira dialoga com o real que lhe resiste, opera num ir e vir entre a instância lógica e a empírica, é fruto do debate argumentado de idéias. O autor adverte que o racionalismo que ignora os seres, a subjetividade, a afetividade e a vida é irracional. A racionalidade deve reconhecer o afeto, o amor e o arrependimento; deve conhecer ainda os limites da lógica, do determinismo, do mecanicismo e saber que a mente humana não pode ser onisciente, pois a realidade comporta mistérios. Por fim, a racionalidade tem a capacidade de identificar suas insuficiências.
Armada pela racionalidade, a educação deve levar em conta a zona invisível na qual habita os paradigmas, entendida aqui como um determinado princípio de seleção de idéias que estão integradas no discurso ou na teoria. Os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles. E mais: os paradigmas determinam conceitos, comandam discursos e ou teorias. Exemplificando, Morin evoca o “grande paradigma do Ocidente”, formulado por Descartes e imposto pelo desdobramento da história européia a partir do século 17: o cartesianismo. Este paradigma separa o sujeito do objeto, qualidade/quantidade, espírito/matéria, sentimento/razão, existência/essência, colocando, de um lado, a filosofia e a pesquisa reflexiva, e de outro, a ciência e a pesquisa objetiva. A relação lógica estabelecida pelo paradigma cartesiano está baseada na disjunção e determina uma visão dupla do mundo. Desse modo, diz Morin, um paradigma pode ao mesmo tempo elucidar e cegar, revelar e ocultar. Compete à educação despertar a mente humana para que desconfie de seus produtos “ideais”, para assim, evitar idealismos e racionalização. Como diz Morin, é necessário civilizarmos nossas teorias, ou seja, desenvolver uma nova geração de teorias abertas, racionais, críticas, autocríticas, reflexivas, aptas a se auto-reformar. Há a necessidade que se enraíze um paradigma que permita o conhecimento complexo. Esta lucidez é tarefa da educação.
O conhecimento pertinente pautado pela complexidade comporta o entendimento da condição humana por meio do circuito razão/afeto/pulsão. A relação entre as três instâncias não são apenas complementares, mas também antagônicas, portanto, conflituosa. Nesta relação triúnica, a racionalidade não dispõe de poder supremo. Inclusive ela mesma (a racionalidade) pode ser dominada, submersa ou mesmo escravizada pela afetividade ou pela pulsão. Por sua vez, a pulsão pode servir-se da máquina lógica e utilizar a racionalidade técnica para organizar e justificar suas ações.
Há ainda outro circuito envolvendo o conhecimento, que é indivíduo/sociedade/espécie. As interações entre indivíduos produzem a sociedade, e esta, por sua vez, testemunha o surgimento da cultura e que retroage sobre os indivíduos pela cultura. Nesse circuito, não se pode tornar o indivíduo absoluto e tampouco fazer dele o fim supremo. Cada um desses termos é ao mesmo tempo meio e fim: é a cultura e a sociedade que garantem a realização dos indivíduos e são as interações entre indivíduos que permitem a perpetuação da cultura e a auto-organização da sociedade. A plenitude desse circuito é a livre expressão dos indivíduos-sujeitos, do desenvolvimento das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana.
Unidade e diversidade
Desta feita, cabe à educação cuidar para que a idéia de unidade da espécie humana não apague a idéia de diversidade e que a idéia da diversidade não apague a da unidade. É fundamental pontuar que a unidade não está apenas nos traços biológicos da espécie homo sapiens, e a diversidade não está apenas nos traços psicológicos, culturais e sociais do ser humano. Tanto a unidade pode ser encontrada em quesitos afetivos, intelectuais, mentais, quanto a diversidade repousa também sobre traços biológicos. É a unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades, de modo que compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade e sua diversidade na unidade. A educação deve ilustrar este princípio de unidade/diversidade em todas as esferas, isto é, na esfera individual existe unidade/diversidade genética na qual todo ser humano carrega, de modo cerebral, mental, psicológico, afetivo, intelectual e subjetivo, os caracteres fundamentalmente comuns e, ao mesmo tempo, possui suas próprias singularidades cerebrais, mentais, intelectuais, afetivas etc. Na esfera social existe a unidade/diversidade das línguas, das organizações sociais e das culturas.
Para Morin, o ser humano é ao mesmo tempo singular e múltiplo. Para ele, todo ser humano, tal como o ponto de um holograma, traz em si o cosmo. Mesmo o ser fechado na mais banal das vidas constitui ele próprio um cosmo. Traz em si uma infinidade de personagens quiméricos, uma poliexistência no real e no imaginário, na obediência e na transgressão, no ostensivo e no secreto a contar pelas suas profundezas insondáveis.
É importante que a educação do futuro também esteja ciente da complexidade do ser humano em sua bipolaridade: sapiens e demens (sábio e louco); faber e ludens (trabalhador e lúdico); empiricus e imaginarius (empírico e imaginário); economicus e consumans (econômico e consumista); prosaicus e peticus (prosaico e poético). De modo que o século 21 deverá abandonar a visão unilateral que define o ser humano apenas pela racionalidade (homo sapiens), pela técnica (homo faber), pelas atividades utilitárias (homo economicus) e pelas necessidades obrigatórias (homo prosaicus).
O homem da racionalidade é também o da afetividade, do mito e do delírio (demens) e esse jogo perpassa toda a rede dos tipos de homo. Assim, o ser humano não vive só de racionalidade e técnica, ele se desgasta, se entrega, se dedica a danças, crenças, ritos, magias e muitas vezes vive freqüentemente para preparar sua outra vida além da morte. Salienta-se que as atividades de ritos, de festas não são apenas pausas antes de retomar a vida prática ou o trabalho. A entrega a crenças e idéias tampouco podem ser reduzidas a ilusões ou superstições: possuem raízes que mergulham nas profundezas antropológicas, referem-se ao ser humano em sua natureza.
Somos seres infantis, neuróticos, delirantes e também racionais. Tudo isso constitui o estofo propriamente humano. O ser humano é um ser racional e irracional, capaz de medida e desmedida; sujeito de afetividade intensa e instável. Sorri, ri, chora, mas sabe também conhecer a objetividade; é sério e calculista, mas também ansioso, angustiado, gozador, ébrio, extático; é um ser de violência e de ternura, de amor e de ódio; é um ser invadido pelo imaginário e pode reconhecer o real, que é consciente da morte, mas que não pode crer nela; que secreta o mito e a magia, mas também a ciência e a filosofia; que é possuído pelos deuses e critica as idéias; nutre-se dos conhecimentos comprovados, mas também de ilusões e de quimeras. E quando na ruptura de controles racionais, culturais, materiais, há confusão entre o objetivo e o subjetivo, entre o real e o imaginário, quando há hegemonia de ilusões, excesso desencadeado, então o homo demens submete o homo sapiens e subordina a inteligência racional a serviço de seus monstros… (Morin, 2002, p. 59 e 60).
Como educar sem antes conhecer a condição humana? A citação acima contribui para o desenvolvimento da racionalidade de educadores, sobretudo ao desafio de pensar o homo complexus. A educação deveria mostrar e ilustrar o destino multifacetado do humano: o destino da espécie humana, o destino individual, o destino social, o destino histórico, todos entrelaçados e inseparáveis (interdependência). Assim, uma das vocações essenciais da educação do futuro é o exame e o estudo da complexidade humana, da rica e necessária diversidade dos indivíduos, povos, culturas sobre o enraizamento como cidadãos do planeta.