Da crença à ciência: enquadramentos do Fantástico


Adriana Donini

Jéssica de Cássia Rossi

 

Em 29 de agosto, o programa Fantástico, da Rede Globo, estreou a série “É bom pra quê?”, apresentada pelo médico Drauzio Varela, que já comandou outras produções na área de saúde exibidas pelo programa.

A emissora divulgou no seu sítio na internet que o objetivo do quadro é “discutir os usos e abusos dos tratamentos médicos feitos com produtos derivados de plantas que não passaram pelo crivo científico dos estudos clínicos, e analisar as perspectivas da fitoterapia medicinal”.

Por meio da metodologia denominada enquadramento ou framing é possível identificar formas de abordagem e interpretações realizadas pela mídia. Enquadrar significa selecionar alguns aspectos e salientá-los de maneira que seja promovida uma definição particular do problema, que o assunto tratado seja emoldurado sob a ótica do veículo de comunicação.

Com o intuito de analisar o enquadramento presente nessa série, estudamos os três primeiros capítulos, veiculados em 29 de agosto, 5 e 12 de setembro. Consideramos, principalmente a categorização sobre a fitoterapia e em relação a um químico do Maranhão que receita pomada de graviola, e também o discurso utilizado.

Foi possível notar que prevaleceu a associação do uso de plantas no tratamento de doenças à ineficácia e à negatividade, como nos seguintes trechos: “Mas será possível existir alguma coisa capaz de nos livrar de praticamente todas as doenças? E ali, no jardim, no quintal, na roça, na feira, ao alcance da mão?”; “Fátima Regina ficou quase um ano doente e teve que tirar a vesícula. O diagnóstico do médico: intoxicação”; “a popularidade dos chás e das infusões não tem sido acompanhada de estudos científicos”; “Tratar uma doença grave com produtos alternativos pode ter consequências perigosas”; “o extrato de graviola, testado em laboratório, pode multiplicar as células cancerígenas”; “Na sala de cirurgia, Sebastiana Teixeira de Oliveira ainda não sabe que as sete ervas e a argila não ajudaram”.

O discurso da eficácia de medicamentos alopáticos, se comparado ao uso de plantas, ficou evidente em vários trechos dos capítulos da série, como nesse em que se procura mostrar que a utilização de medicamentos tendo por base a tradição popular não trouxe benefícios. “(…) enquanto a medicina era feita dessa maneira, epidemias matavam populações inteiras; éramos incapazes de impedir a progressão das doenças, ou mesmo de aliviar a dor. A milenar medicina chinesa era tão precária que, até o início do século passado, os chineses viviam, em média, pouco mais de 30 anos. A grande mudança aconteceu na primeira metade do século XX, com descobertas como a da penicilina, o primeiro antibiótico. Antes dessa revolução, a expectativa de vida, na Europa desenvolvida, era de 40 anos. Hoje dobrou. Em alguns, países já passa dos 80”; e também nesta fala: “Hoje, em casa, Dona Sebastiana diz que fez bem de não seguir as recomendações dos terapeutas alternativos. Se tivesse esperado mais tempo para fazer a biópsia, a doença teria avançado. Agora, ela está enfrentando a quimioterapia com mais confiança”.

Em trecho de entrevista com Gilberto Schwartsmann, coordenador do Laboratório de Câncer do Hospital das Clínicas, notamos que o depoimento serve para legitimar o enquadramento negativo dado à fitoterapia e para valorizar a defesa de etapas seguidas pelos medicamentos convencionais: “Na oncologia, talvez metade das quimioterapias que nós usamos venham da natureza, mas isso é diferente de usar a natureza direto. Isso é o que a gente não gosta. É uma coisa irresponsável e ilegal”. E, no comentário do médico Daniel Deheinzelin, “infelizmente, para esse tipo de preparado, a gente não tem nenhuma evidência. Isso não foi testado da maneira como foram testados outros remédios”.

O Fantástico não sustenta somente a falta de estudos científicos para o uso dos medicamentos fitoterápicos, mas também procura mostrar que, quando esses medicamentos são testados em laboratórios, os resultados não apontam eficácia no seu uso. “A pomada de graviola não foi aprovada. Não houve diferença entre os ferimentos tratados com a pomada feita com a planta e naqueles tratados com um creme neutro. Ou seja, tanto faz uma pomada com ou sem graviola”. Ou ainda, apresentam efeitos agressivos: “‘Quando nos tratamos com o extrato de graviola, o que nós observamos é que houve um aumento de células em relação a sem nada de tratamento’, diz Caroline Bruneto de Farias, pesquisadora do Hospital das Clínicas de Porto Alegre”.

Outro discurso saliente é o de que a fitoterapia é utilizada nos casos em que há uma deficiência do sistema público de saúde, conforme observamos nesta fala: “Existem regiões de alguns países em desenvolvimento e, majoritariamente os países da África, em que algumas vezes a opção preferencial é pelo fitoterápico. Ela não é nem preferencial, ela é quase mandatória porque as pessoas não têm outra opção terapêutica”; “O que a comunidade usa em lugar dos remédios que não chegam é colhido em uma horta”. Esse discurso também é reforçado na seleção de falas de entrevistados como do Presidente do Conselho Federal de Medicina, Roberto Luiz D’Avila: “E nós já alertamos, inclusive, as autoridades públicas sobre isso. Isso me parece muito mais um remendo, que transforma aquilo que deveria ser de qualidade num arremedo de um tratamento. As pessoas estão enganadas. As pessoas estão recebendo algo que não é o melhor”.

O Fantástico mostra que, nem mesmo quando o tratamento de doenças é feito com a fitoterapia e apresenta resultados positivos, eles podem ser atribuídos ao uso de plantas alternativas. Nesse caso, o êxito do tratamento é atribuído ao estado psicológico do paciente, como no seguinte trecho: “O simples fato de ser bem acolhida e de receber uma receita na qual a pessoa acredita reduz a ansiedade e pode aliviar sintomas. Em medicina, isso é chamado efeito placebo”.

Além disso, o programa justifica a falta de estudos científicos sobre as plantas ao ritmo acelerado no uso da medicina alternativa e aponta as consequências que essa incompatibilidade proporciona: “Infelizmente a popularidade dos chás e das infusões não tem sido acompanhada de estudos científicos. A falta de pesquisa abre caminhos para indicação de tratamentos inúteis, para a demora em buscar assistência médica adequada e para a prática do charlatanismo”.

O uso das plantas também foi associado à religião, como percebemos na seguinte passagem: “‘Muitos dos que divulgam tratamentos alternativos são ligados a algumas religiões, padres e outros e a pessoa vai para lá, quer dizer, se eu não acreditar no padre, em que eu vou acreditar?’, afirma o médico Riad Younes”.

Pelos trechos apresentados, notamos que o programa demonstra que a fitoterapia pode causar prejuízos à prática médica: “A farmacêutica estudou a relação entre remédios contra o câncer e plantas. Ela concluiu que mais da metade dos pacientes que faziam os dois tratamentos estavam sujeitos a interações medicamentosas”.

No enquadramento dado pelo programa, o Ministério da Saúde também não age adequadamente no controle dos fitoterápicos: “Os oitos fitoterápicos aprovados pelo Ministério da Saúde e distribuídos pelo SUS não passaram pelos estudos científicos exigidos para os remédios convencionais alopáticos. Por isso, não se sabe com detalhes que efeitos colaterais podem provocar”.

O discurso da defesa da classe médica é evidente quando Drauzio faz a seguinte afirmação: “O professor Antônio Augusto Brandão Frazão dá aulas na Universidade Estadual do Maranhão. Ele tem um centro de tratamento com plantas na área do Aeroporto de Imperatriz, construído e mantido pela Infraero. Nesse local, ele consulta pacientes, faz diagnósticos e receita remédios a base de plantas, sem ser médico. O professor é químico”.

Assim, constatamos que a série “É bom pra quê?” valeu-se de diversas falas, incluindo de quem faz uso das plantas em tratamentos, médicos, pesquisadores e representantes de órgãos da área da saúde para produzir um discurso que enquadra a fitoterapia como algo que carece de mais estudos, e que, para ser oficializada, precisa  ser submetida à política da indústria farmacêutica e, consequentemente, gerar rendimentos. Com isso, nota-se que, com a ênfase aos pontos negativos desse tema, foram desconsiderados a produção científica já acumulada nesse campo e os seus resultados.


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