Murilo César Soares
Se diz que a campanha atual é sem conteúdo, que não há debate, etc. É verdade. Não se fala de política econômica, de taxa de câmbio, de relações internacionais, das políticas públicas. Além disso, na medida em que o próprio Lula não concorre, mas uma candidata de sua indicação, petista recente, também todo aquele conteúdo romântico, libertário, que a figura do metalúrgico trazia para as campanhas, ficou para trás. Na verdade, era o Lula mitológico, barbudo e de camiseta, no meio da massa, que dava a sua campanha um aspecto arrebatador de movimento social, um caráter fortemente popular, de mudança, enfim. Ele era um personagem épico com a cara do povo, dos peões das fábricas, das greves, das lutas históricas. Dilma tem origem na classe média, fez curso superior, exerceu cargos técnicos. É experiente, competente, mas não desperta paixões políticas. Parece fria, eficiente, lendo desajeitadamente o teleprompter, com pausas e respiração erradas. Por isso, também, a campanha de 2010 não acende o entusiasmo das militâncias.
Há um jogo de cena de denúncias e indignações, mas só. A revista Veja reassume seu papel de investigadora das falcatruas do governo, criando situações constrangedoras para a candidata. O horário eleitoral repercute as denúncias, amplificando sua importância. O candidato da oposição manifesta sua indignação, etc.
No entanto, o barco da situação continuou navegando, apesar das baixas. Na campanha atual, mais uma vez, como em 2006, os pobres parece que vão liquidar a fatura. Se bem que com base na renda, no emprego, na vaga na universidade, na expectativa de comprar uma televisão, uma casa, quem sabe? Não é pouca coisa. Essas pessoas ficaram esquecidas no passado, entraram em cena agora e vão permanecer enquanto houver crescimento da renda, do consumo, emprego e vagas na universidade. Os pobres descobriram sua força eleitoral, o “seu lado” na política.
Foi-se a “ideologia”, os trabalhadores querem seu quinhão agora. Quem poderá criticá-los? Felizmente, ninguém invoca o “populismo” do governo, pois o próprio populismo perdeu o sentido pejorativo de antes. A política populista significou, no Brasil, exatamente o crescimento econômico acompanhado de distribuição de renda. Esse ciclo se esgotou em 1964 com a inflação, a recessão e, naturalmente, com o golpe militar.
A cidadania agora, proclama a propaganda, são salários, o notebook da filha, a expectativa de melhorar de vida, como diz a propaganda. Claro, fazem-se críticas (procedentes) aos banqueiros, à taxa de juros indecente, à insustentabilidade do crescimento da economia, mas na campanha nada disso tem vez, fica para mais tarde.
Este é o paradoxo da atual eleição presidencial: sem conteúdo político declarado, sem os ardores da militância do passado, mas consolidando uma via desenvolvimentista e social, com forte conteúdo popular. Depois, é claro, haverá a partilha dos cargos, com os fisiológicos de sempre disputando suas sesmarias. Mas a direção estará dada. É uma inflexão na política brasileira, mostrando que a vitória de Lula em 2002 e a reeleição em 2006 não foram pontos fora da curva, mas uma tendência.
Muitos vão perguntar se isso é bom ou ruim. Os pobres, é claro, não têm dúvida. Por sua vez, a classe média, como já o faz, lamentará a grossura dos discursos do presidente, a ultrapassagem do bom-tom, da compostura, o ponto em que chegamos, etc. Os jornais vão continuar a invocar o aparelhamento do governo, o crescimento do poder dos grupos atuais, encastelados nos ministérios e nas estatais. E terão razão: o poder tem efeitos colaterais graves.
Aos que debatem o fim da política, será um grande tema. A eleição terá roubado a cena da política, mais uma vez, num espetáculo mediático, mas, agora, confirmando um sentido novo: o da reversão radical da composição de forças no tabuleiro do poder. O jogo que começará a ser escrito no dia seguinte à eleição se dará em bases novas, apesar de arrastar consigo o passivo dos arcaísmos brasileiros.
Foto: Convenção Nacional do PT realizada em 13 de junho de 2010, que confirmou o nome de Dilma como candidata do partido (Paulino Menezes)