A construção do herói na revista Veja


Maria Carolina Silva Rocha Vieira



Atualmente, a revista Veja tem despertado o interesse de diversos pesquisadores, devido à sua capacidade de produzir sentidos e formar opiniões, com textos carregados de informação, porém também fortemente permeados pela opinião. O jornalismo praticado pela revista, muitas vezes, assume uma postura capaz de ditar normas para o leitor, possuindo certa autonomia para determinar aspectos da vida particular do indivíduo e trazendo visões próprias dos fatos.

Na edição 2157, publicada em 24 de março de 2010, a reportagem de capa dedica-se a abordar, a partir do fato concreto do assassinato do cartunista Glauco e seu filho por Carlos Eduardo Sundfeld Nunes (o Cadu), os efeitos do chá servido nos cultos do Santo Daime, seita que tanto Glauco quanto Carlos Eduardo freqüentavam. A análise mais profunda da reportagem refere-se ao levantamento de dados mais detalhados sobre a vida de Carlos Eduardo e de Glauco, principalmente no que diz respeito ao envolvimento de ambos com a comunidade Céu de Maria – igreja fundada pelo cartunista; aos eventos ocorridos após o crime; ao histórico da evolução do culto ao Santo Daime; às explicações sobre as substâncias que compõem o chá “alucinógeno” servido nos rituais e sobre o perigo de sua combinação com outras drogas; e uma entrevista com o pai de Carlos Eduardo, o comerciante Carlos Grecchi.

Nota-se que Veja tomou uma posição perante o caso do assassinato de Glauco: ela não culpa Carlos Eduardo por seus atos, já que, emocionalmente instável, ele foi levado a experimentar o Daime pela própria vítima (deixa-se claro que a intenção de Glauco era ajudá-lo, porém o cartunista não foi bem-sucedido). São levantados diversos argumentos que enfatizam a ação alucinógena do chá ministrado nos cultos do Santo Daime – agravada se misturada com outras drogas – o que teria ocasionado o crime.

Para construir essa versão, a reportagem utiliza-se de diversos recursos, a começar pela capa: a chamada “O psicótico e o Daime”, em conjunto com a linha fina “Até que ponto se justifica a tolerância com uma droga alucinógena usada em rituais de uma seita?” já dão a entender que a discussão levantada pela reportagem não é sobre a culpa ou não de Carlos Eduardo pelo assassinato, e sim sobre até que ponto o crime foi conseqüência do uso do chá do Daime por uma pessoa emocionalmente instável. Percebe-se que Carlos Eduardo é chamado de psicótico e não de assassino.

A linha fina do corpo do texto também reforça essa idéia: “Tomar o chá alucinógeno da seita Santo Daime quando se tem um transtorno psíquico, afirmam especialistas, é o mesmo que jogar gasolina sobre um incêndio. Tudo indica que esse foi o caso de Cadu, o assassino do cartunista Glauco e seu filho Raoni”. Nota-se, também, que o chá ministrado nos cultos do Santo Daime, denominado oficialmente de ayahuasca, é a todo o momento chamado de alucinógeno, inclusive em dois quadros de títulos “Alucinógeno legalizado” e “Mistura Perigosa”, que abordam os riscos de se misturar bebida com outras drogas. Os rituais do Santo Daime são chamados de seita e não de culto, o que confere um tom pejorativo à religião.

Alguns outros trechos e termos utilizados repetidamente confirmam a posição adotada pela revista: Carlos Eduardo é tratado como “assassino confesso”, o que, neste caso, confere-lhe uma imagem de submisso e conformado (o que não condiz com a realidade, pois ele tentou fugir das autoridades, como é descrito no próprio texto da matéria); a fala “como fazem hoje em dia 90% dos jovens” de Carlos Nunes Filho, avô de Cadu,é usada para justificar o uso de maconha pelo neto; e ainda, especificamente sobre o chá ayahuasca, a reportagem deixa clara sua posição em classificá-lo como alucinógeno, alegando que uma de suas substâncias é proibida “em quase todo o mundo”, encerrando com uma comparação a tentativa de legalização da maconha para usos terapêuticos, sendo assim “grandes as chances de outras drogas entrarem para o rol de ‘sagradas’”.

Enfim, focalizando o personagem de Carlos Eduardo e sua relação com o Santo Daime, a reportagem, em suas linhas gerais, isenta o assassino confesso do cartunista Glauco e seu filho Raoni da responsabilidade de seus atos. A revista ainda salienta a ação alucinógena do chá ministrado nos cultos do Daime e as conseqüências de sua combinação com outras drogas alucinógenas (tais como a maconha, consumida por Cadu) ou com problemas psicológicos. Para reforçar a idéia defendida, a reportagem constrói um texto narrativo que dá argumentos, conceitos e classificações feitos “sob medida” (tal como referir-se ao chá sempre como “alucinógeno”, mesmo sendo legalizado no Brasil) e o completa com imagens, com destaque às fotos de Carlos Eduardo. Portanto, de acordo com a abordagem dada a determinado fato, pode-se – e foi o que fez a revista Veja neste caso – transformar um assassino em “herói”, isentando-o da culpa de seus atos e relegando tal responsabilidade a terceiros, nesse caso, os membros da seita do Santo Daime.


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