Questões sobre o toque de recolher para menores


Carlo José Napolitano


Este texto foi produzido em decorrência da minha participação em evento na Instituição Toledo de Ensino, cujo objetivo foi debater a temática Segurança e Violência.

O assunto que norteou as discussões naquele evento foi a proposta da adoção do toque de recolher para menores de idade, na cidade de Bauru. A proposta foi apresentada pelo comando do 4º Batalhão da Polícia Militar ao Juiz da Infância e Juventude desta comarca, agente político, em tese, competente para adotar tal medida.

No intuito de colaborar com as discussões acerca do toque de recolher, abordei a questão sobre três aspectos: 1 – jurídico, 2 – político/filosófico; 3 – sociológico.

A questão jurídica

A temática da segurança, interna ou externa, sempre esteve presente na estrutura do Estado moderno. Ocorre que desde o início do século passado, o Estado passou a assumir funções antes reservadas para a sociedade civil. Essas funções apareceram em forma de políticas públicas.

Segundo Grau (1990, p. 19) o Estado deixa “então, de intervir na ordem social exclusivamente como produtor do Direito e realizador de segurança, passando a desenvolver novas formas de atuação, para o que faz uso do Direito positivo como instrumento de implementação de políticas públicas.”.

A proposta de adoção do toque de recolher, no município de Bauru, é um claro exemplo de formulação de uma política pública. Tal política pública foi proposta, como dito acima, pela Polícia Militar ao Juiz da Infância e Juventude desta Cidade e seria efetivada, via portaria, exarada por essa autoridade judiciária.  Esta portaria estaria respaldada no artigo 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90). Este artigo dispõe que compete à autoridade judiciária disciplinar, através de portaria, ou autorizar, mediante alvará: I – a entrada e permanência de criança ou adolescente, desacompanhado dos pais ou responsável, em: a) estádio, ginásio e campo desportivo; b) bailes ou promoções dançantes; c) boate ou congêneres; d) casa que explore comercialmente diversões eletrônicas; e) estúdios cinematográficos, de teatro, rádio e televisão. II – a participação de criança e adolescente em: a) espetáculos públicos e seus ensaios; b) certames de beleza. Dispõe ainda no § 1º que para os fins do disposto neste artigo, a autoridade judiciária levará em conta, dentre outros fatores: a) os princípios desta Lei; b) as peculiaridades locais; c) a existência de instalações adequadas; d) o tipo de freqüência habitual ao local; e) a adequação do ambiente a eventual participação ou freqüência de crianças e adolescentes;f) a natureza do espetáculo. No parágrafo subsequente determina que as medidas adotadas na conformidade deste artigo deverão ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral.

É nesse ponto que está o problema jurídico da proposta, qual seja, a proibição legal de determinações judiciais de caráter geral. É bom ressaltar desde logo que o órgão do Poder Executivo competente para deliberar sobre políticas públicas relacionadas às crianças e aos adolescentes, já se manifestou contrário a essas medidas.

Na 175º Assembleia Ordinária, o CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), há exatamente um ano, aprovou um parecer contrário a essas medidas, com os seguintes fundamentos jurídicos, aqui apresentados em resumo:

Tais portarias sobre o toque de recolher:

1 – desrespeitam o princípio da liberdade, previsto no artigo 5º da CF; portanto, são inconstitucionais;

2 – são ilegais, pois desrespeitam o comando do artigo 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente, pois criam normas genéricas;

Existem outros fundamentos na nota emitida pelo Conanda, como exemplo: o ato é repressivo, com nítido viés de limpeza social e desrespeita convenções internacionais sobre os direitos da criança e do adolescente.

Quanto às questões referentes à constitucionalidade e ilegalidade da medida, estou convicto do acerto do Conanda. Nesse sentido, creio que a portaria é inconstitucional, pois como alega o Conanda, ela desrespeita o princípio da liberdade. É bom frisar que nem mesmo em Estado de Sítio e de Defesa, o direito à liberdade pode ser restringido, o que reforça a tese da inconstitucionalidade da medida.

No entanto, vou além dos argumentos apresentados pelo Conanda. O ato é inconstitucional, também, pois não cabe ao Poder Judiciário ou a qualquer órgão desse Poder da República determinar providências de caráter geral. Isso somente é possível quando a própria constituição assim autoriza. O que não é o caso das portarias sobre o toque de recolher.

Na estrutura dos Poderes da República a competência para editar medidas de caráter geral é do Legislativo e não do Judiciário[1]. Essa impossibilidade de editar medidas genéricas foi pontuada pelo artigo 149 do Estatuto, que acabei de mencionar.

Nesse sentido, no aspecto estritamente técnico jurídico, tenho claramente que a medida do toque de recolher é inconstitucional e ilegal. Não podendo ser editada.

A questão política/filosófica

Como disse também na introdução tentei abordar a temática sob o viés político/filosófico. Nesse sentido, a ligação estabelecida foi na direção da emancipação e da autonomia do indivíduo. Neste caso, o meu posicionamento é pessoal e não técnico. Nesse sentido, não compreendo ser razoável ao Estado tutelar a família. A autonomia e emancipação da família e, consequentemente, do sujeito se dá pela liberdade. O indivíduo deve ter a oportunidade de escolhas. A interferência do Estado, no interior da família, seria uma ingerência indevida e prejudicial à emancipação. O homem continuaria alienado e sem possibilidade de definir seu destino. Uma das pilastras do Estado e da sociedade moderna é a liberdade, baseado no pensamento filosófico iluminista. Nesse sentido, penso que a adoção da medida representaria um retrocesso.

A questão sociológica

Nesse aspecto o meu receito diz respeito à ineficácia social da medida, fato que acarretaria, como consequência, o aumento na descrença nos poderes constituídos. O que se apregoa para a adoção da medida, como exemplo paradigmático, é o caso da Cidade paulista de Fernandópolis. Lá essa medida, que foi adotada há alguns anos, teve resultados satisfatórios, com ampla aprovação popular.

No entanto, muitas vezes o simples transplante de ideias, não garante a sua eficácia. Oliveira Vianna (1974), sociólogo brasileiro do início do século passado já denunciava essa prática em nosso Estado. Segundo esse pensador, o transplante de ideias nem sempre é adequado.

Pois bem. Seria razoável pensar que o que deu certo lá em Fernandópolis, daria certo aqui em Bauru? Não sei, tenho minhas dúvidas. Farei uma pequena comparação entre as duas cidades, com dados extraídos do site da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade). Ambas as cidades possuem área territorial e concentração demográfica, aproximadamente, iguais. No entanto, a população bauruense é 5,5 (cinco e meio) vezes maior que a população de Fernandópolis.

A população com menos de 15 anos de idade, por exemplo, gira em torno de 20%, nas duas cidades comparadas. Com um cálculo rápido, verifica-se que em Fernandópolis a população alvo da medida gira em torno de 13.000 adolescentes, em Bauru, esse número seria de 73.400. Diante disso, o que se pretende aqui em Bauru é fiscalizar uma cidade inteira do tamanho de Fernandópolis. A probabilidade da medida ser ineficaz é grande devido a sua abrangência e as consequências do seu insucesso geraria, como dito, descrença nos poderes instituídos.

Conclusão

Diante do que foi mencionado acima, creio que a medida não deva ser adotada pelos fundamentos jurídicos acima expostos, bem como pelas preocupações polícias e sociológicas levantadas. No entanto, é bom ressaltar que tal proposta está sendo amplamente discutida pela sociedade bauruense, em eventos acadêmicos, audiências públicas e na mídia o que é extremamente salutar para a cidadania participativa.

Referências

GRAU, E. R.. A ordem econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.

NAPOLITANO, C. J.. A judicialização da política no Supremo Tribunal Federal: análise de julgamentos relacionados à reforma do Estado nos anos 90. Doutorado em Sociologia. Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2008.

VIANNA, O. Instituições políticas brasileiras. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 1974, v. 1.

_______. Instituições políticas brasileiras. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp; Niterói: Editora UFF, 1987. v. 2.


[1] Esses assuntos foram tratados na minha tese de doutorado (NAPOLITANO, 2008).


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