Linguagem e as marcas da subjetividade no jornal Expresso


Jéssica de Cássia Rossi


É comum pensarmos que a subjetividade é uma capacidade existente no homem em qualquer situação de sua vida[1]. Pensamos que, de qualquer modo, ele pode refletir sobre si mesmo e o mundo ao seu redor. Contudo, ao conhecermos melhor o conceito de subjetividade na perspectiva da linguagem, vemos que a subjetividade é constituída na linguagem e pela linguagem. Por ela, o sujeito e o sentido se constroem no momento de uma enunciação, determinada pelas condições de produção de um discurso. Nesse processo, o indivíduo pode assumir diversas posições e adotar diferentes sentidos que imprimem marcas de subjetividade no processo enunciativo. O objetivo do nosso trabalho é identificar as marcas de subjetividade na notícia “Filhas de Bragança”, jornal Expresso, em sua versão digital.

Entre as formas de expressão da subjetividade em um discurso, Brandão (1998) nos mostra que elas podem ocorrer por meio da referência relativa à situação de comunicação ou dêitica. Por ela, a denominação de um objeto é feita a partir dos dados particulares da situação de comunicação. Dependendo do papel que o indivíduo exerce no processo de alocução (locutor, alocutário e delocutário) como os pronomes pessoais, bem como do tempo e do espaço da enunciação. Nesse tipo de referência, há os dêiticos que são um conjunto de signos vazios, disponíveis a serem preenchidos na instância do discurso. Já para Gomes (2000), a subjetividade em uma enunciação pode vir à tona por meio dos shifters que “dizem respeito a palavras que funcionam como marchas nas quais se engata um falante e o mundo enquanto falado” (GOMES, 2000, p. 67).  Tanto os shifters quanto as referências dêiticas de Brandão (1998) tem o mesmo significado. Entre os tipos de shifters encontramos: os de pessoa, os de escuta ou testimoniais e os de organização. Os dois últimos são utilizados no discurso jornalístico. Os shifters de escuta ou testimoniais são usados quando ao se contar um fato, menciona-se também o ato de informar e a palavra do enunciante referido, exemplos “disse” e “segundo entendi”. Já os shifters de organização são usados quando o enunciador organiza seu próprio discurso de modo coerente, exemplos “dissemos anteriormente” e “torno a repetir”.  A impressão de marcas subjetivas na linguagem é um tema também tratado por Kebrat-Orecchini (1980), quando ela aborda os substantivos axiológicos. Eles se referem a substantivos afetivos/valorativos derivados de verbos e adjetivos como, por exemplo, “amor e amar”.

O preenchimento de significado de um dêitico ou shifter, por exemplo, depende das condições de produção de determinado discurso, o qual nunca é o mesmo, pois não tem um significado fixo. Como afirma Possenti (2001, p. 73), “(…) há algo que não está no que é dito, mas na maneira de dizer, e que denuncia um ponto de vista”. É assim que se constitui a subjetividade na linguagem, ela toma corpo à medida que os sujeitos são capazes de enunciar suas perspectivas.

O jornal Expresso é um meio de comunicação de referência no contexto português, junto com os jornais Público e Diário de Notícias. A versão impressa do jornal tem periodicidade semana e há também uma versão digital. A notícia “Filhas de Bragança”, de 28/04/2008, publicada nas versões impressa e digital, relata o fato da presença de prostitutas brasileiras na cidade de Bragança em Portugal, apesar da tentativa expulsão das mesmas em 2003 pelo movimento “Mães de Bragança”. Nesse episódio, algumas mulheres portuguesas denunciaram a presença de prostitutas em casas de alterne (locais de prostituição) que seus maridos frequentavam em Bragança. Segundo o movimento, as “meninas brasileiras” estariam desmoralizando a pequena cidade. Usamos a notícia para analisar os protagonistas do discurso e as marcas de subjetividade presentes na construção enunciativa do jornal Expresso.

Nossa abordagem está estruturada pela identificação da referência dêitica de pessoa (locutor, delocutorio e locutário), de tempo e espaço, em quais inserimos também a identificação de shifters de escuta ou testimoniais e shifters de organização, bem como os substantivos axiológicos:

1. A referência dêitica de pessoa

– O Locutor (Quem Fala): é o jornal Expresso, o qual informa à sociedade portuguesa sobre a presença de prostitutas brasileiras na cidade de Bragança. A intenção do jornal é mostrar que, apesar do episódio do movimento “Mães de Bragança” ocorrido em 2003, o fenômeno continua na atualidade. O jornal Expresso exerce o papel de porta voz da sociedade portuguesa por trazer a público uma situação que ele acompanha e denuncia. Percebemos isso em expressões como: “o Expresso sabe”, “nós”, “nos mostra”, “perguntam-nos” e “pedirmos”. A utilização do plural “nós” produz uma amplificação do circuito do emissor. Por essa perspectiva, o jornal tem legitimidade para investigar a situação em nome do interesse público português.

O Alocutário (Para quem se fala): é o leitor de sua edição impressa e digital (potencialmente a sociedade portuguesa em geral).  A estratégia do jornal é demonstrar que está cumprindo seu papel, ao denunciar a situação ao leitor. Em um primeiro momento, podemos pensar a relação conversacional da notícia por um “eu” representado pelo jornal Expresso e de um “tu” representado pelo leitor do jornal que não é citado na notícia. Entretanto, ao analisarmos melhor a enunciação do jornal, percebemos que o alocutário, no caso do leitor, está sim, indiretamente, presente no discurso em questão. Ele pode ser identificado na instância do locutor da enunciação no momento em que o jornal Expresso, utiliza a expressão “nós” e as declarações de representantes da sociedade portuguesa, trazendo o alocutário para a dimensão da locução. O  uso do termo “nós” pode ser entendido como  a junção do eu + você que inclui o leitor do jornal. Ao utilizar esse recurso, o jornal Expresso assume que está informando o leitor de alguma coisa porque exerce a referencialidade, confirmada pela existência de um “tu”.

– O Delocutário (De quem se fala): são (ex) prostitutas brasileiras na cidade de Bragança ou ao seu redor. O jornal Expresso descreve o ambiente em que a prostituição ocorre e apresenta depoimentos de (ex) prostitutas brasileiras para confirmar a continuidade da prostituição em Bragança. As declarações servem para confirmar a própria visão do jornal sobre a prostituição em Bragança. Percebemos que há também a presença de substantivos axiológicos como “sexagenário” e “improvável. A riqueza de detalhes, a adjetivação e os substantivos axiológicos expressam a posição valorativa do jornal diante da situação. O papel do jornal, enquanto defensor do interesse público português, de modo objetivo, entra em conflito com seus juízos de valores negativos em relação ao fenômeno de Bragança.

2. A referência dêitica de espaço: a dimensão espacial é a cidade de Bragança, em Portugal,  e ao Brasil e o resto do mundo. As referências espaciais da notícia são construídas em torno da oposição polarizada dos dêiticos “aqui” versus “lá”. Essa definição ocorre a partir do contexto em que está inserido o locutor (jornal/sociedade portuguesa), ou seja, o “aqui” (cidade de Bragança, em Portugal) e o “lá” (Brasil e o resto do mundo). É possível dizer que há um jogo entre o conhecido versus o desconhecido no mapeamento do espaço. O que justifica a utilização de muitos termos para se referir ao “aqui” e poucos termos para se referir ao “lá”.

3. A Referência do dêitico de tempo: a referência temporal é construída a partir do movimento “Mães de Bragança” em 2003 até o momento da produção da notícia em 28/04/2008. A ordem cronológica se estabelece em um espaço temporal de cinco anos, no qual há a referência dêitica a um passado e a um presente. Ambos são elucidados a fim de se mostrar a continuidade da prostituição em Bragança na atualidade, apesar das denuncias feitas em 2003 pelo movimento “Mães de Bragança”. Ele é o marco referencial para a constituição e desenvolvimento do espaço temporal da prostituição em Bragança na notícia. Isso pode ser visto, até mesmo, no título da notícia “Filhas de Bragança”, cujo termo “filhas” é uma substituição temporal do termo “mães” (das “Mães de Bragança” do passado nasce, na atualidade, as “Filhas de Bragança”).

Verificamos que as referências dêiticas, os shifters e os substantivos axiológicos apontam a construção de uma enunciação específica às condições de produção da situação. O jornal Expresso/sociedade portuguesa/prostitutas brasileiras (eu/tu/ele), circunscreve pela linguagem os outros elementos da notícia, ou seja, o espaço e o tempo da enunciação. Todas essas referências apontam as marcas de subjetividade que se constitui no discurso em questão. Essas marcas estão presentes na enunciação do jornal Expresso e podem ser identificadas de diversas maneiras. Nossa interpretação da constituição da subjetividade na linguagem é uma forma de realizar essa identificação dentro das condições de produção em que estamos inseridos.

Referências

BRANDÃO, H. H. N. Subjetividade, argumentação e polifonia. São Paulo: Unesp, 1998.

GOMES, M. R. Prática jornalística: o olhar, a voz e a escrita. In: ______. Jornalismo e

ciências da linguagem. Hacker Editores/Edusp, 2000, p. 57-67.

POSSENTI, S. Língua e discurso. In: ______. Discurso, estilo e subjetividade. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 61-85.


[1] Este texto é versão resumida de trabalho apresentado no Celacom (Colóquio Internacional sobre a Escola Latino-Americana de Comunicação) 2010.


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