As razões do observatório


Murilo César Soares


Este Observatório é resultado do trabalho do grupo de pesquisa Mídia e Sociedade, que há três anos se dedica ao tema das relações entre os meios de comunicação e a cidadania.  A idéia foi proposta ao grupo pelo professor Danilo Rothberg, que também é responsável pelo desenvolvimento do site, recebendo aceitação imediata, uma vez que propicia a oportunidade de produção e disponibilização de avaliações, análises, abrindo o debate sobre a mídia com usuários de internet interessados nesse tema.

Mas o que justifica a preocupação com o tema “mídia e cidadania”?  Considerando que a “mídia” é composta em sua maioria por empresas privadas de comunicação, então, qual a sua relação com um tema público? Se temos liberdade de expressão, o conteúdo dos meios não deveria ser um assunto livre de controles externos?

Para responder a essas indagações, é preciso distinguir, preliminarmente duas situações: a dos meios que dependem de concessão estatal, como rádios e televisões, e a dos que não dependem de concessões, como, por exemplo, os meios impressos e a internet.

Concessões públicas

Os meios que dependem de concessão, operam fazendo suas transmissões por meio da utilização privada do espectro eletromagnético, que é  um recurso natural limitado da nação, portanto,  de propriedade da sociedade como um todo.   Setores desse espectro são concedidos pelo Estado a certas empresas para finalidades de “educação e cultura”, financiadas pela publicidade comercial.  Nesse caso, cabe, obviamente, uma discussão pública sobre os conteúdos, programação, uma vez que a sociedade tem o direito de participar do debate sobre a utilização dos recursos naturais da nação.  Além do benefício econômico a empresas privadas, a radiodifusão é uma atividade que contribui para a formação de concepções e valores.   Também há temas e exibições que podem não ser adequadas às faixas etárias de crianças e adolescentes, por uma questão de imaturidade, embora possam ser apropriadas para adultos.  Nestes casos, a palavra-chave, hoje, em todo mundo civilizado, é “regulação”, ou seja, uma ação de órgãos públicos que vise compatibilizar conteúdos e horários, por exemplo, de forma a limitar a exposição de crianças e adolescentes, ao mesmo tempo em que se mantém a liberdade de expressão.

Já no caso dos meios que não dependem de concessão, como justificar intromissões externas nos seus conteúdos?  Geralmente, empresas de comunicação argumentam nesse sentido, agitando o capítulo da liberdade de expressão, que tem fundamento constitucional.   Nesses casos, defendem-se, não se deveria opinar sobre conteúdos, sob pena de caracterizar uma ingerência que ameaça a liberdade de opinião, por exemplo.  No entanto, há duas ressalvas.  A primeira é a de que a sociedade civil tem o direito à crítica dos meios, apoiando-se na própria liberdade de expressão de idéias e opiniões, no sentido de estabelecer o debate público sobre conteúdos, linguagens, independente de mandato,.   É o que se observa, por exemplo, na livre crítica cultural ou estética de espetáculos, filmes, discos, com base no gosto dos críticos ou nos seus critérios artísticos.   Em outra linha de interesses, igualmente se justifica uma crítica a valores sociais ou concepções, veiculados explícita ou subliminarmente em espetáculos, filmes, letras de música.   É direito das pessoas e entidades, por exemplo, criticar as insinuações, imagens ou expressões consideradas de caráter sexista, racista, preconceituoso, intolerante, ou apenas de mau-gosto, que sugiram desprezo  ou insensibilidade para com a condição de categorias, classes ou grupos.   Esse debate tem um caráter civilizatório, melhorando os critérios e elevando o padrão de exigências simbólicas para a convivência social.   Não se trata de uma disposição legal, mas de critérios culturais de… cidadania.

Comunicação e jornalismo

Deixei por último, para focalizar o caso específico do jornalismo.   Esta é uma atividade diferenciada no campo da comunicação, regulada por protocolos profissionais e  éticos próprios.  O jornalismo é uma atividade vital para a sociedade contemporânea e exigências de qualidade, rigor, equilíbrio são necessárias até mesmo para a sua credibilidade.  O teórico da comunicação Dennis McQuail se refere a essa questão, escrevendo que, “sem a ética profissional, o jornalismo é show business”. show e, além disso, exerce influência nas políticas, nas leis e na administração públicas, tendo, não sem razão, apelidado de “Quarto Poder”.  Um autor norte-americano, por isso mesmo, defende que o jornalismo é uma “instituição política”. Vários autores ressaltaram a ação do jornalismo na crítica e fiscalização da ação dos governos, até o ponto de se tornar um lugar comum dizer que “jornalismo é de oposição, pois jornalismo a favor é publicidade”.

Historicamente, nos países democráticos, os meios jornalísticos vêm cumprindo seu papel de fiscalização dos governos e a própria existência de imprensa livre se tornou um critério de democracia.  Essa atividade no campo político marca o jornalismo desde as suas origens e, sem dúvida, integra a cidadania política, ao fazer valer o direito à informação sobre decisões públicas. Mas, excetuando o caso da cobertura política,  o jornalismo ainda tem um longo caminho a percorrer no caso da cidadania.   Um estudo que acabo de realizar[1] com uma amostra dos dois grandes diários de São Paulo revela que, desconsiderando a política, menos de 10% do noticiário de assuntos gerais se referem a temas de cidadania.  Além disso, os temas de interesse da maioria dos cidadãos, tais como violência estatal, habitação, distribuição de renda e reforma agrária, são os últimos colocados numa lista de assuntos.

Os meios jornalísticos podem dedicar mais espaço e tempo a esses direitos da cidadania, além de outros como educação, saúde, segurança, relações de cor, relações de gênero, emprego, movimentos sociais, segurança ambiental.   Espaço e tempo maiores dedicados a essas questões representam mais pressão sobre as autoridades para que tenham mais empenho no respeito aos direitos civis e sociais da cidadania.

Um dos propósitos do Observatório de Comunicação e Cidadania será acompanhar como os meios jornalísticos estão focalizando essas questões, em comparação com os demais assuntos.  Esse trabalho tem uma natureza investigativa e pedagógica. A cultura jornalística não é estática, responde aos contextos sociais e queremos monitorar avanços (ou recuos) dos meios no avanço da cidadania.


[1] SOARES, M.C. Os direitos na esfera pública mediática: a imprensa como instrumento da cidadania. Relatório de estágio pós-doutoral.  São Carlos, UFSCar, 2010.


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