A moda como expressão cultural e jornalística


Malena Pignatari

Maria Antonia Vieira Soares


“Moda é o prazer que nunca cansa, é novidade constante, excede  a questão dos desfiles, excede a beleza, não se restringe a roupa, design, obras culturais, linguagem, comportamentos, gostos e idéias… ficando claro que para além de um discurso estético e sedutor, a moda interfere em modos de vida, faz parte de concepções de mundo distintos”

Ana Carolina Lahr

“…O repórter vai ao encontro do universo que tem de cobrir, mistura-se com ele, confunde-se até onde é possível, para captar pelo cérebro e pelas entranhas, pela emoção e pela razão, as componentes lógicas e subjetivas da vida que o trespassa e pela qual tem de atravessar com presença e envolvimento para retratá-la…”

Edvaldo Pereira Lima

Ao colocar a moda como um lugar de enunciação que envolve questões socioculturais, capaz de acolher e simbolizar diferenças na contemporaneidade, o livro-reportagem de Ana Carolina Lahr “Além das Passarelas” projeta o assunto numa cadeia de sentidos muito mais complexa ao mesmo tempo em que discute a questão do jornalismo especializado em cobertura de moda. Destaca-se a acurácia jornalística quanto ao estar ciente de que o sujeito jornalista não é propriamente um estilista ou um consultor de moda, mas alguém com formação para fazer uso de ferramentas teórico-práticas próprias de uma comunicação imersa na cultura industrializada, com o fim de evitar distorções e aproximar-se de posições sólidas relativas ao objeto da cobertura jornalística. Entre as ferramentas enfatiza-se: 1) a familiaridade com a linguagem, com o universo da moda; 2) a familiaridade com a aplicabilidade dessa linguagem e 3) a familiaridade com estratégias de comunicabilidade (os gêneros mediáticos).

O capítulo “O Dilema” (p.166) ascende a polêmica em torno da necessidade do jornalista ultrapassar seu campo de formação e se aventurar no mundo da moda não só como espectador, mas como um sujeito que efetivamente participa desse universo para conduzir e gestar suas notícias. A controvérsia coloca, de um lado, opiniões como da consultora de moda e jornalista Érika Palomino, para quem a moda é uma janela e precisa-se estar nela para compreendê-la, e de outro, a do editor do site Abril Jorge Wakabara que defende o feeling de jornalista, o furo, a apuração como algo para além do conhecimento de moda.

É oportuno ressaltar, em relação ao projeto gráfico, que nas páginas centrais do livro (94 a 97) há um olhar da pesquisadora sobre os bastidores da São Paulo Fashion Week (SPFW) – evento de moda anual que em sua última edição (janeiro de 2010) gerou para a economia de moda cerca de R$ 1,5 bilhão, segundo dados da Folha on-line. Nesse sentido, o livro traz um componente de revista de forma mais elementar, reforçando em certo aspecto a idéia do livro-reportagem como um produto híbrido: de um lado, com a ausência de periodicidade e o tema monográfico como característico desse tipo de publicação e, de outro, o formato e a diagramação como releitura de magazines. Quanto às imagens gráficas utilizadas não houve apenas uma preocupação estética, mas atribuiu-se dimensão criativa à estética. Ou seja, estética aqui não significa apenas destreza artística senão uma sensibilidade para o cruzamento de linguagens (jornalística, literária e gráfica) própria da concepção do livro-reportagem para conformação de uma identidade visual desejada.


Livro-reportagem

Para alguns estudiosos do gênero, como Edvaldo Pereira Lima e seu clássico Páginas Ampliadas, o livro-reportagem constitui-se como uma obra de autor e, por isso, é marcante a presença do idealizador. Ana Carolina Lahr utilizou da técnica do narrador em 1ª pessoa, o que possibilitou compartilhar seus pontos de vista, estratégia típica do livro-reportagem ensaio. A estratégia permitiu à pesquisadora exercitar antecipadamente “a crítica de moda”, um dos gêneros pontuados no livro e comentados pelo editor de moda do site Abril Jorge Wakabara. Entretanto, Além das Passarelas trata-se de um livro-reportagem retrato, focalizando o segmento moda, as complexidades em torno do fenômeno.

O livro-reportagem é sem dúvida um exercício fantástico do fazer jornalístico. Antes mesmo de enfrentar as duras jornadas diárias que não permitem tanta liberdade editorial, de tempo e angulação, através da empreitada literário-jornalística, o pesquisador experimenta algumas editorias: exercita-se reportagem, edição, captação da pauta, o time nas entrevistas. Conforme Lima: “…O repórter vai ao encontro do universo que tem de cobrir, mistura-se com ele, confunde-se até onde é possível, para captar pelo cérebro e pelas entranhas, pela emoção e pela razão, as componentes lógicas e subjetivas da vida que o trespassa e pela qual tem de atravessar com presença e envolvimento para retratá-la…”

Lahr seguiu também outra recomendação para os autores de livro-reportagem: texto leve, muitos capítulos e de preferência haja “gancho” entre a passagem de um capítulo ao outro, e as citações deram conta disso, além da composição de fotos e imagens localizadas. E ainda o mais importante: o livro-reportagem almeja preencher os vazios informativos, almeja a compreensão mais profunda de determinada realidade, além do sentido oculto, simbólico do fenômeno, das forças que o regem e os valores opacos da ocorrência. Uma compreensão da realidade que ultrapassa o enfoque linear da comunicação.  Nessa perspectiva, a moda aparece no contexto do fato nuclear não como um mecanismo isolado, mas como expressividade sociocultural, como parte de uma cadeia complexa de produção de sentido que envolve produtores e consumidores, cabendo ao pesquisador analisar as lógicas de produção e consumo. Citando novamente Lima, “…tudo começaria…no livro-reportagem e na universidade, porque são funções nobres, de ambos ampliar os horizontes da humanidade, estabelecer novas diretrizes e acender a admirável chama interna do ser humano em busca de condições cada vez mais ampliadas de compreensão de si mesmo e do mundo”. A propósito, a concepção teórico-metodológica do trabalho permitiu à pesquisadora:

  • Fazer uso do termo moda não só como sinônimo de vestuário, mas atribuindo a roupa uma função comunicativa, retirando a indumentária de uma noção apenas de prazer estético.

  • Informar que as roupas fazem da aparência pessoal uma força poderosa, posto que a imagem promove uma inversão simbólica capaz de afetar as pessoas consciente e inconscientemente.

  • Atribuir à moda um poder de distinção social, seja enquanto apreciação estética seja quanto a função comunicativa.

  • Relembrar que na Idade Média a moda não era apenas um signo de nobreza, mas acompanhou o enfraquecimento do poderio da corte. Havia através de seu uso o desejo da individualização da aristocracia.

  • Posicionar que a modernidade abriu caminho, através das novidades tecnológicas, para a democratização do vestuário.

  • Verificar que a roupa também é uma forma de camuflar restrições sociais ou econômicas que não se quer demonstrar.

  • Ter ciência de que a chamada “alta costura” foi, entre outros aspectos, uma forma de aprisionar a moda, conformando um nivelamento de classes, do luxo como valor de gosto e refinamento, ditando tendências de maneira uniforme. Paradoxalmente, a “alta costura” guarda sua importância, em especial, para a sedimentação do universo da moda e para abrir caminho em relação a discussão da democratização do mundo da moda.

  • Confirmar o surgimento de novos valores de expressão individual, de liberdade do homem, com os movimentos jovens (década de 60), o prêt-à porter invadindo os magazines.

  • Verificar que a mídia, entre outros fatores, é um elemento que potencializa um fato, é um suporte dentro de um processo complexo de comunicação. Uma importante mediadora, mas não a causa mais relevante para a conformação do mundo da moda. O contexto sócio-histórico cultural do livro revela que a mídia é um elemento operador, entre um conjunto de operadores sócio-simbólicos envolvendo o universo da moda. Com isso, o que se quer dizer é que a informação da moda produzida na mídia não é apenas um fato senão um ciclo ininterrupto de transformações, resultado de uma série de acordos e disputas que se dão desde o momento do acontecimento, passando pelos agentes e interlocutores, até chegar aos jornalistas e aos leitores. Estes últimos (os leitores) também interlocutores, agregando sentidos de forma contínua.

Ainda quanto ao percurso sócio-histórico, no capítulo “União de Peso” (p.74), entretítulo “Valor Agregado”, Lahr traz uma discussão em âmbito identitário ao convidar os leitores a refletirem sobre as diferenças em torno do universo da moda tanto a partir do sujeito produtor quanto do sujeito consumidor, rompendo com a relação de imposição oriunda da “alta costura”, do aprisionamento etnocêntrico. Trata-se de uma reinterpretação que ganhou uma maior confluência de vozes com a questão da novidade, da democratização-individualização da moda na tardomodernidade. Com isso, o sujeito capta o universo da moda segundo sua concepção de mundo, segundo as construções socio-históricas e culturais que fazem parte da cotidianidade desse sujeito. No processo de comunicação, na relação enunciador /enunciatário, o enunciatário não é apenas ponto de chegada, ele ressignifica e reorienta a mensagem, ele negocia sua interação com ela e  produz dessa interação sua concepção de moda.

Além das Passarelas talvez tenha pecado em dois aspectos e, ainda sim, essas “ausências” não comprometeram o compromisso com o rigor teórico e precisão jornalística, a saber: o livro é mais documental explorando pouco as fontes orais do universo da moda contemporânea. Ressente-se do pressuposto jornalísticos dos depoimentos “casados” durante o próprio percurso teórico apresentado, até para proporcionar ganchos jornalísticos durante o resgate do sentido de moda em contextos sócio-históricos e culturais distintos.  Na esteira da crítica para o enriquecimento mútuo, outro ponto a ser assinalado encontra-se no capítulo “As Diretrizes” (p.145) onde há a seguinte afirmativa: “algumas vezes, a imagem do veículo não se forma a partir dos leitores, mas de uma ideologia: uma visão jornalística, artística, política etc. Quando isso acontece não é o público que molda o veículo, mas o veículo que molda o público e o espaço para o leitor não possui, de fato, poder”.  O problema aqui está justamente em atribuir uma unidade de sentido à ideologia “conformada pelo veículo” pois, em realidade, essa unidade não existe. Isso porque, os textos da cultura da mídia incorporam vários discursos, posições ideológicas, estratégias narrativas, exatamente em razão de querer atrair maior público.  Soma-se a essa consideração, o fato da narrativa jornalística ser construída com base em uma narrativa anterior (aquele captada com o entrevistado, com a testemunha do fato, com a fonte), ficando mais evidente a instabilidade dessa ideologia do veículo.

Retomando o capítulo “Dilema”, cabe salientar o cruzamento de “mídias” e gêneros mediáticos (blogs + livro-reportagem + crônica ), promovendo um “Fórum de debates” entre algumas personalidades do universo da moda no Brasil como a editora de moda da vogue Brasil Maria Prata, para quem fazer uma faculdade de moda vale muito mais que um curso de jornalismo se a finalidade do indivíduo é entrar para o mercado editorial. Prata deixa entrever em suas palavras certo reducionismo do curso de jornalismo a mera técnica. Já Wakabara argumenta não ser possível o desenvolvimento de um olhar crítico sobre moda sem o conhecimento por meio da formação jornalística. Para ele, o jornalista não é um mero instrumento de fabricar notícia. A teoria sustenta o sujeito jornalista como aquele que  precisa de capital simbólico para se distinguir e a prática jornalística sedimenta a teoria, numa dialética e não numa oposição reducionista e puramente pragmática. Ainda sim fica a interpelação diante do “dilema” teoria versus prática ou conhecimento versus técnica trazido por Lahr que, pelo sim pelo não, remete a outra discussão macro, a da não obrigatoriedade do diploma. Fiquemos por aqui, pois como diz o jornalista e ex-coordenador do curso de Jornalismo da Casper Líbero, Marco Antonio Araujo: “…Demora-se a vida inteira para ser jornalista. Portanto, um curso rápido não transforma a pessoa num jornalista, nem um curso longo…”.


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